Em encontro da Especialização em Antropologia com ênfase em Culturas Afro-brasileiras, da Universidade do Sudoeste da Bahia – UESB/Jequié, no fim de semana (07/10), partindo da leitura de “O que é isso que chamamos de Antropologia brasileira”, de Roberto Cardoso de Oliveira, o professor Dr. Edson Dias Ferreira, orientando-nos na disciplina Teorias Antropológicas, pediu aos alunos que fizéssemos – olha a silepse – um texto apontando relações entre a Antropologia e nosso projeto de pesquisa. A idéia era provocar uma reflexão sobre o fazer antropológico, coadunando teoria e prática.
Me propus a escrever algo não muito grande, “uma lauda a uma lauda e meia”, como diria o carismático professor, mas que aqui, permito-me ampliar um pouco.
Gostaria de dividir esse texto com vocês, justamente porque estou convencido de que o conhecimento produzido na Universidade, strictu sensu deve ser disponibilizado para que possa ser discutido, repensado, re-elaborado. Por outro lado, penso ser obrigação do pesquisador fazê-lo, principalmente se pensarmos a questão do ponto de vista social. Ora, é com dinheiro público que faço a minha especialização. O contribuinte paga impostos, porque não devolver à sociedade o que estamos produzindo?
Enfim, ao aceitar o desafio de relacionar meu tema de pesquisa com a antropologia, diversas reflexões se apresentaram. É fato que com a pós-modernidade e os outros tantos pós que estão postos, há uma polifonia quanto ao lugar da Antropologia como ciência, seja em relação aos seus objetos de pesquisa ou à metodologia. Discussão importante e profícua que, noves fora, lega à Antropologia um caráter multidisciplinar e im-completo por excelência.
Entendo, portanto que, diante de um mundo pós-moderno, híbrido, multicultural, no qual, as identidades não podem ser mais compreendidas como fixas, mas em constante mudança, afiançar uma pesquisa em um ou outro método antropológico seria um equívoco, uma vez que, não se há que falar em antropologia neste trabalho, mas em antropologias.
Julgo inclusive que os trabalhos, de qualquer tipo que se apresentam hoje não poderiam falar de método de pesquisa antropológica, assim, no singular. Mesmo “os do passado”, não conseguiriam tal grau de pureza que o levasse a ser apenas partidário de certo pensador. Crer nisso seria ignorar um processo absolutamente natural, humano e histórico: a intertextualidade. Tentar retratar o homem pelo viés da singularidade oprime as manifestações plurais e por isso mesmo, complexas que se impõem.
Em meu trabalho apresentado à Universidade do Sudoeste da Bahia, o que se pretende é investigar, particularmente, como os mitos dos orixás são revividos, reapropriados através dos rituais de iniciação. Em outras palavras, questionamos a relação semiósica existente entre os mitos dos orixás e os rituais próprios de iniciação, momento em que o iniciado deixa de ser apenas um consulente, um abiã, e passa a ter um novo nome. Cremos que há uma relação de reiteração do discurso mitológico nos rituais de iniciação. Que estudo é esse senão antropológico?
Parece-me claro que ao estudar os rituais de iniciação produzidos nos terreiros, utilizando-me de um “diário de campo”, como já o fez Boaz, Darcy Ribeiro, Strauss e tantos outros, de questionários des-estruturados, de gravações de entrevistas e transcrições, de imagens fotografadas e sua análise iconográfica, invariavelmente, os estudos antropológicos, se farão presentes.
Ao observar – participativamente, ao influir no processo de produção de sentido dos sujeitos envolvidos a ser estudado, incluindo a mim mesmo como um “corpo/corpus” que movimenta símbolos, na verdade, nenhuma outra “coisa” estará sendo praticada que não seja a antropologia, sobremodo, em seu viés etnológico e etnográfico.
Quando me proponho a estudar os mitos dos orixás, se por um lado, me debruço sobre o proposto por Pierre Verger e Juana Elbein dos Santos, meu encontro se dá com autores próprios de um domínio discursivo etnológico, e se por outro lado, meu namoro com a sociologia-antropológica de Reginaldo Prandi tiver termo, a etnografia, enquanto escrita do visível e da memória histórica será uma constante.
Naturalmente, ao correlacionar estas informações que descendem da atividade participante, a análise hermenêutica, o trato qualitativo, a antropologia interpretativa serão a tônica, haja vista nossa proposta de descrever a semiose envolvida na relação mitos dos orixás e rituais de iniciação.
Não poderei me furtar ao estudo das representações, dos processos de significação. Não poderei me furtar ao contato humano em seu estado mais visceral, “antropovisceral”. Para descortinar os “efeitos” de representação dos orixás e dos rituais da iniciação, muitas noites ao pé do fogão com a ialorixá, mexendo panela de barro serão fundamentais. Gostosamente fundamentais, assim como, a conversa casual com os iniciados, com aqueles que pretendem se iniciar, com os clientes, após, durante, antes de um ritual. Já pensou na beleza antropológica que se constrói logo após à louvação de Exu-Odara, pedindo-lhe que comunique a Elegbará que os ebós, as oferendas estão prontos e que os caminhos de comunicação entre aiye e orun, Tempo profano – Tempo Sagrado – Tempo Primordial devem se conectar. Tudo isso claro, pode ser descrito “densamente”, mas as risadas, o quentinho dos comes e bebes, o vento harmonioso e o cheiro de terra, os beijos e abraços tão cuidados de axé podem não participar.
Urge, portanto, buscar instrumentos – no plural mesmo – antropológicos para discutir os complexos do homem, com vistas a compreender por meio de quais símbolos “tal coisa” recebeu “dado significado”, numa constante espiral de inferências da ordem da interpretação peirceana, ad infinitum. Neste sentido, uma antropologia lógico-filosófico se convoca, eliminando barreiras entre o sujeito cartesiano e o sujeito pós-moderno, complexo e multifacetado.
Há questões das quais não podemos fugir: este trabalho nasce no berço da antropologia, de modo que, a Antropologia não é apenas convidada: é partícipe fundamental, que se desdobra, aqui, em uma antropologia intersemiótica.
Espero que estas reflexões respondam ao questionamento do professor, que alías, muito didático, não se apoderou de nossas mentes depositando conhecimentos propedêuticos. Antes, está além, propondo questões, promovendo discussões, algo próprio do que fazer científico.
Sua pergunta maliciosa no sentido mais delicioso do termo, provocando à atividade, colocou umas pulguinhas inteligentes em nossa cabeça, como diria Rubem Alves.
Ferreira nos remete à meta-antropologia: exatamente o que me foi oportunizado fazer aqui. Além, oportunizou o diálogo dos símbolos dos deuses iorubás com a Antropologia, mediatizados por uma tradução, que poderia chamar – o outro Ferreira que me dê licença -, poética da Antropologia, porque vai costurando uma parte na outra parte, que é questão de vida ou morte, será arte, será arte: vertigem e linguagens.