Os que acham que a mundialização é incontornável deveriam dar-se conta de que podem ser contornados ou derrubados
O pensamento neoliberal desenvolve a noção de inevitabilidade: o sistema que é, deve ser porque ele é; a mundialização/globalização, tal como se desenvolve, é inevitável, todos e todas devem ajustar-se a ela.
Mergulhamos assim no misticismo e no fatalismo. Entretanto, um olhar atento à história demonstra a inadequação da idéia de “irreversibilidade”. Tomemos o exemplo do domínio financeiro. No início do século XX, a liberdade dos movimentos de capitais, garantida pelo padrão-ouro, a liberdade do câmbio, garantida pelos tratados sobre o comércio e o investimento, pareciam irreversíveis. A primeira guerra mundial veio revivar tudo isto. Nos anos 1920, o todo-poder dos mercados financeiros parecia tão irreversível como pretende ser hoje. O krach de 1929, e a longa crise que se seguiu, obrigaram os governos a vigiar estreitamente as atividades bancárias e financeiras. No fim da segunda guerra mundial, os governos dos principais países capitalistas vencedores se puseram de acordo para se dotar de instrumentos de controle financeiro no plano internacional; o FMI tinha notadamente como objetivo zelar por este controle (seu artigo VI o estipula explicitamente). Vários governos da Europa Ocidental empreenderam, a partir de 1945, vastos programas de nacionalizações, incluindo bancos, sob a pressão do mundo do trabalho.
As certezas teóricas neoliberais ostentadas hoje não valem mais do que as dos liberais ou dos conservadores no poder nos anos 1920, na véspera do krach financeiro. O fracasso econômico e o desastre social provocados pelos neoliberais de hoje poderiam desembocar em novas grandes mudanças políticas e sociais. A mundialização não é um rolo compressor que esmaga tudo na sua passagem: as forças de resistência estão bem presentes. A mundialização está longe de ter levado a um sistema econômico coerente: as contradições no seio da Tríade são múltiplas (contradições entre potências imperialistas, contradições entre empresas, descontentamento social, crise de legitimidade dos regimes atuais, criminalização do comportamento dos grandes atores econômicos).
Além disso, as contradições entre o Centro e a Periferia se reforçam, pois a dinâmica atual da mundialização é excludente. Os povos da Periferia constituem mais de 85% da população mundial: os que acreditam que eles vão se deixar marginalizar sem reagir se enganam pesadamente, tal como os governos que, nos anos 1940 e 1950, acreditavam ainda na estabilidade da dominação colonial sobre a África e uma grande parte da Ásia.
Enfim, no interior da Periferia, as autoridades que agem aceitando o curso neoliberal perdem progressivamente elementos de legitimidade. Em geral, a classe dominante nestes países não tem mais perspectiva de progresso para oferecer à grande massa da população.
Por que excluir então que o descontentamento social se expresse novamente em torno de projetos emancipadores? Não está dito que o descontentamento deva tomar o caminho do recuo identitário, “étnico” ou religioso. No meio de situações tão dramáticas como as da Argélia, forças significativas agem com um projeto progressista.
Não há nem fatalidade econômica, nem situação política que não possa modificar-se pela ação das forças sociais.
Hoje ainda, uma alternativa deve incluir diversas dimensões:
– Uma dimensão política. Se o poder político deliberadamente abandonou uma parte de seu poder de controle, permitindo assim a desregulação dos movimentos de capitais, ele pode, sob a pressão popular, retomar de modo igualmente deliberado este controle (“vontade política”). Se ele não realiza esta virada, também pode ser derrubado.
– Uma dimensão cidadã e uma dimensão de classe. Os e as de baixo, em todas as suas organizações, quer sejam originárias do movimento operário do século XIX (partidos, sindicatos), quer sejam originárias de outros movimentos populares, de novos movimentos sociais da segunda metade do século XX, devem reapropriar-se do direito de intervenção, do direito de controle, do direito de pressão sobre os outros participantes, e colocarem-se na prática a questão do exercício direto do poder.
– Uma dimensão econômica. A conjunção das outras dimensões deve levar a decisões econômicas cujo eixo essencial será constituído por medidas restritivas com relação aos movimentos de capitais e aos que os decidem: seus detentores. O caráter inviolável de sua propriedade privada está igualmente no centro do debate vindouro. Com efeito, se queremos defender o bem comum e o acesso universal aos serviços básicos, somos levados a afirmar a necessidade de transferir para o domínio público empresas privadas que açambarcam o patrimônio da humanidade e impedem a satisfação dos direitos humanos fundamentais.
A evolução do capitalismo hoje põe portanto na ordem do dia o debate sobre uma nova radicalidade. Com efeito, as formas anteriores de compromissos foram varridas pela crise econômica e pela onda neoliberal.
O compromissos social fordista no Norte,o compromissos desenvolvimentista no Sul, o controle burocrático no Leste, onde existiram, não tinham feito desaparecer o uso da força por parte dos detentores do poder, longe disso, mas a via seguida incluía a seu lado certos elementos de progresso social. Era este último elemento que permitia, em certos casos, os compromissos. Estes compromissos foram rompidos pela lógica atual do Capital e pelas escolhas dos governantes. É preciso contrapor a eles uma nova abordagem rupturista, anti-sistêmica. Isto implica que os e as de baixo se tornem atores autênticos da mudança e da gestão desta mudança.
Isto implica, de maneira igualmente necessária, que os movimentos sociais sejam fiéis aos interesses daqueles e daquelas que representam; que sejam de uma independência rigorosa com relação aos poderes políticos. Não podem garantir esta fidelidade senão desenvolvendo uma verdadeira democracia interna, privilegiando portanto a expressão das pessoas que estejam fazendo política no dia-a-dia, favorecendo a elaboração destas escolhas, estimulando a concretização das estratégias para atingi-las.
Uma ação combinada dos trabalhadores e dos movimentos sociais
A ofensiva neoliberal é tal que exige uma ação combinada dos(as) assalariados(as), dos(as) oprimidos(as) do mundo inteiro. Ela é necessária para abolir o desemprego. Fazê-lo desaparecer exige a redução generalizada do tempo de trabalho, sem perda de salário e com contratações compensatórias; ela é necessária para fazer face às deslocalizações e às demissões. O apoio dos trabalhadores do Norte aos trabalhadores do Sul é indispensável para que estes obtenham aumentos de salários e, de uma maneira geral, os direitos sindicais que lhes permitam elevar-se ao nível das condições de existência dos trabalhadores do Norte.
Na atualidade, se o mundo do trabalho continua sendo a alavanca mais poderosa para intervir na luta política, é vital associar-lhe o mais estreitamente possível todos e todas os que foram postos à margem da produção. É preciso também associar-lhe todos os movimentos sociais que lutam contra a opressão, qualquer que seja a forma que ela tome.
Pessimismo da razão e otimismo da vontade
Se é necessário ter o “pessimismo da razão” para dar-se conta da amplitude do ataque neoliberal, da forte organização de seus promotores, é preciso igualmente tomar em conta o “otimismo da vontade” que anima setores inteiros da população mundial.
Sem a resistência que vemos erguer-se, obstinada, determinada, corajosa, nos quatro cantos do planeta, as forças motrizes e os prosélitos da mundialização capitalista teriam marcado pontos muito mais significativos do que puderam fazê-lo. Este já é um resultado notável, ainda que não seja suficiente.
Quebrar o isolamento das lutas
Já o dissemos, a classe capitalista controla os meios de comunicação, sobretudo televisuais. Não é de seu interesse propagar no mundo imagens das lutas que mostram a criatividade dos(as) oprimidos(as).
Freqüentemente são-nos mostrados enfrentamentos com a polícia ou com o exército, mas é bem mais raro que sejam exibidos os detalhes da luta, o engenho dos trabalhadores, os achados dos manifestantes, as atividades que deram seus frutos. Isto levaria ao risco, de fato, de dar idéias a outros movimentos, e esta parte do acontecimento representa um perigo para a classes capitalista. A contrario, podemos medir o enorme impacto de mobilização que representam os meios de comunicação quando dão conta da amplitude e da inteligência de um movimento. Um exemplo: o movimento de greve de novembro-dezembro de 1995 na França suscitou uma enorme simpatia que a mídia não pôde minimizar, e a expressão desta simpatia difundida em uma escala tão importante servia, ela mesma, como catalisador da ampliação do movimento.
As lutas não se enfraquecem, elas tendem até mesmo a se multiplicar em proporção aos ataques. Um dos problemas mais difíceis que a resistência encontra, é o sentimento de isolamento e, certamente, uma das questões mais importantes para os progressistas é quebrar este isolamento e trabalhar para a convergência das lutas.
Pela concentração dos que decidem as políticas ao nível mundial, pela similaridade do empobrecimento que impõem a todo o planeta, a luta dos camponeses sem terra no Brasil se junta à luta dos operários da Volkswagen contra sua multinacional; a luta das comunidades ameríndias zapatistas por uma vida digna no campo mexicano se junta à dos sem-papéis da França e da Espanha; a luta dos sindicatos sul-coreanos para defender suas conquistas se junta à dos movimentos sociais da República Democrática do Congo pela anulação da dívida africana; a luta da população tailandesa contra a imposição de uma austeridade drástica se junta à luta da população belga que desafia os poderes político e judiciário incapazes de se opor à mercantilização das crianças; a luta das mulheres argelinas se junta à dos tribunais populares que denunciam a dívida ilegítima na Argentina; a luta dos estudantes nicaragüenses se junta à dos militantes de Greenpeace…
Por toda a parte o mundo se agita, puxado pelo sentimento de uma indignidade forçada, impulsionado por um desejo de viver melhor, revoltado contra a injustiça e a violência de um sistema que se quer apresentar como o nec plus ultra, como o fim da história. Em diversos lugares do planeta as medidas dos “senhores da terra” não são tomadas em meio à apatia. É importante sabê-lo.
Perspectiva da fase atual das lutas contra a mundialização capitalista (2000-2001)
A fase atual da mundialização neoliberal começou grosso modo na virada dos anos 70 e 80, quando as vitórias eleitorais de Thatcher na Grã-Bretanha e de Reagan nos Estados Unidos foram o sinal de uma ofensiva em todas as frentes do capital contra o trabalho e das principais potências capitalistas desenvolvidas contra os países capitalistas dependentes (seus povos sendo visados em primeiro lugar).
Tentativas de destruição das organizações sindicais (destruição do sindicato dos controladores de vôos nos Estados Unidos sob Reagan, e do dos mineiros da Grã-Bretanha sob Thatcher), privatizações massivas, alta das taxas de juros, congelamento dos salários, aumento dos impostos sobre o trabalho e diminuição dos impostos sobre o capital, crise da dívida do Terceiro Mundo, aplicação das políticas de ajuste estrutural nos países da Periferia, guerras sob pretexto humanitário travadas pelas alianças militares dos países mais industrializados contra os países da Periferia, fechamento das fronteiras dos países mais industrializados, reforço do poder de intervenção das instituições multilaterais controladas pelos países mais industrializados, a começar pelos Estados Unidos (FMI, Banco Mundial, OMC), acerto do passo da ONU por estas mesmas potências, reforço do poder das multinacionais, flexibilização do tempo de trabalho e das legislações, feminização da pobreza, ataques contra a proteção social… Tais são os principais sinais de uma ofensiva que ainda está em curso.
A dimensão mundial desta ofensiva e a imposição do mesmo tipo de políticas neoliberais nos quatro cantos do planeta produzem um efeito de sincronização comparável a outras viradas históricas dos dois últimos séculos (era das revoluções na Europa em 1848, primeira guerra mundial e suas conseqüências, vitória do fascismo e segunda guerra mundial, independências dos anos 1950-1960, maio de 68…). Certo, as diferenças são muito importantes. Trata-se de uma sincronização dos ataques, não (ainda?) de uma sincronização das resistências ou dos contra-ataques, salvo na escala do movimento por uma outra mundialização que se mobiliza por ocasião das grandes reuniões de cúpula internacionais. Os diversos elementos de ofensiva enumerados acima são talvez, pela primeira vez na história, vividos simultaneamente pela esmagadora maioria das populações do planeta. E, mais do que em outros momentos da história do capitalismo, certas instituições internacionais simbolizam os males vividos por uma grande parte da humanidade: FMI, Banco Mundial, OMC, grandes multinacionais, principais praças financeiras, G-7…
As resistências a esta vasta ofensiva são inumeráveis e se prolongam há vinte anos, mas em geral chegaram a derrotas parciais. Desde a batalha de Seattle em novembro de 99, há um acordo geral para dizer que há uma internacionalização do movimento de resistência à mundialização.
Se fosse preciso procurar um ano simbólico para situar o giro que desembocou nesta internacionalização, poderia ser escolhido o ano de 1994, marcado especialmente pela rebelião zapatista em Chiapas em janeiro, que soube falar dos problemas de opressão até então percebidos como específicos, em uma linguagem universal que interpela várias gerações. Em segundo lugar, pela comemoração do 50º aniversário do FMI e do Banco Mundial em setembro, em Madrid, que deu lugar a uma importante manifestação de caráter internacional, com uma presença significativa da juventude. Em terceiro lugar, pelo estouro da crise do México em dezembro que, pela primeira vez, fez voar em pedaços o mito do modelo de desenvolvimento neoliberal para os países da Periferia.
Mobilizações importantes tiveram lugar antes no plano internacional (em 82, a enorme manifestação contra o FMI em Berlim; em 89, a mobilização em Paris por ocasião do G-7…), mas não tiveram o mesmo alcance internacional, pois se situavam ainda em pleno mito da “vitória definitiva” do capitalismo e do “fim da história”.
A partir de 1994, assistimos a um processo de acumulação de experiências e de forças que procuram passar à contra-ofensiva. Trata-se de um processo desigual, não linear, relativamente marginal, mas que vai crescendo, no entanto. Algumas datas de experiências que se sucedem no período 1994-2001: o poderoso movimento social do outono de 95 na França (que não tinha relação com a luta contra a mundialização, mas que teve conseqüências importantes na França para o movimento contra a mundialização neoliberal); a contra-cúpula “As outras vozes do planeta” por ocasião da cúpula do G-7 em junho de 96 em Lyon (que deu lugar a uma manifestação de 30.000 pessoas convocadas de maneira unitária pelos sindicatos); o encontro intercontinental convocado pelos zapatistas em Chiapas no verão de 96; a vitória da greve dos trabalhadores de United Parcels Service (UPS) nos Estados Unidos; o movimento de greve dos trabalhadores coreanos no inverno de 96-97; os movimentos de camponeses da Índia em 96-97 contra a OMC; as mobilizações cidadãs contra o projeto do Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI) que obtiveram uma vitória em outubro de 98; a mobilização do Jubileu 2000 em maio de 98 em Birmingham e em junho de 99 em Colônia; as marchas européias em maio de 97 em Amsterdam e em maio de 99 em Colônia; a batalha de Seattle em novembro de 99 e depois; as inumeráveis mobilizações por ocasião das reuniões das instituições internacionais em 2000 (fevereiro de 2000 em Bangkok, abril de 2000 em Washington, junho de 2000 em Genebra, julho de 2000 em Okinawa, setembro de 2000 em Melbourne e em Praga, outubro de 2000 em Seul, a Marcha Mundial das Mulheres em outubro de 2000 em Bruxelas, New York e Washington, dezembro de 2000 em Nice); as conferências internacionais para definir alternativas “África: das resistências às alternativas” em Dakar em dezembro de 2000 e o Fórum Social Mundial de Porto Alegre em janeiro de 2001; as mobilizações contra a cúpula das Américas em Buenos Aires e Québec em abril de 2001; Gênova em julho de 2001 (perto de 300.000 manifestantes para protestar contra o G-8); as manifestações de rua contra a reunião da OMC em Doha, em novembro de 2001; e os numerosos protestos contra a guerra no Afeganistão, desencadeada pelos Estados Unidos e seus aliados em 7 de outubro de 2001.
Cada uma destas mobilizações pôs em movimento de vários milhares a centenas de milhares de manifestantes ou de grevistas. A maior parte destas mobilizações dizia respeito diretamente a temas ligados à mundialização.
Do fracasso do AMI (1998) à Gênova, passando por Seattle, Dakar e Porto Alegre
Instrumentos-chave da ofensiva do capital contra o trabalho e dos países do Centro contra a Periferia, o FMI, o Banco Mundial e a OMC atravessam desde 98 uma profunda crise de legitimidade. O desastre econômico, social e ecológico produzido pela aplicação das políticas impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países da Periferia desembocou em uma perda evidente de legitimidade destas instituições, numa escala de massas, nestes países. As políticas de desregulamentação do comércio e os atentados à soberania dos Estados produziram igualmente uma clara desconfiança da opinião pública, tanto dos países do Centro quanto dos da Periferia, com relação à OMC.
Esta crise de legitimidade é acentuada pelos debates e pelas batalhas internas no seio do aparelho de Estado nos Estados Unidos. O fato de que não haja uma posição consensual no interior do establishment da potência que incontestavelmente domina o FMI e o Banco Mundial exarceba profundamente sua crise: recusa do congresso americano, de maioria republicana, de pagar a quota-parte dos Estados Unidos para certas iniciativas do FMI, comissão bipartidária Meltzer do congresso americano propondo uma redução drástica do papel do FMI e do Banco Mundial (fevereiro de 2000).
Terceiro nível da crise: a crise interna do FMI e do Banco Mundial (em particular esta última), que se traduz notadamente pela partida, em novembro de 99, de Joseph Stiglitz, economista-chefe e vice-presidente do BM e do responsável pelas questões ambientais, e pela demissão barulhenta de Ravi Kanbur, diretor do relatório anual do BM sobre o desenvolvimento no mundo (junho de 2000). Poderíamos acrescentar a luta surda em 98 e 99 entre Michel Candessus e Stanley Fischer (números um e dois do FMI), que levou à demissão de Camdessus antes do fim do seu mandato.
Outro elemento de crise: as contradições entre as grandes potências, a guerra comercial no seio da Tríade (bananas, boi com hormônios, subvenções aos produtos agrícolas e industriais…), as disputas de influência (guerra de sucessão entre as potências pela substituição de Camdessus em fevereiro-março de 2000) enfraquecem a capacidade dos países mais industrializados de imporem em cada caso sua linha estratégica.
A retirada da França da negociação do AMI, pondo um termo provisório a esta ofensiva, é uma ilustração disto. Com efeito, se o Primeiro Ministro Jospin anunciou a retirada da França, não foi simplesmente em razão das mobilizações cidadãs; foi também como resultado das batalhas comerciais travadas entre si por França, Estados Unidos e outros gatunos.
É preciso acrescentar as contradições entre a Tríade, de um lado, e os países da Periferia, de outro. A designação do atual diretor da OMC, Mike Moore, foi objeto de uma disputa prolongada entre os países que apoiavam este último (começando pelos Estados Unidos) e importantes países da Periferia que apoiavam o candidato tailandês. Batalha que terminou com um compromisso: Mike Moore dirige a OMC na primeira parte do mandato, o tailandês na segunda.
O fracasso da Rodada do Milênio em Seattle foi o resultado da conjugação dos diversos elementos de crise citados acima: crise de legitimidade traduzida por uma poderosa mobilização de massas, contradições no seio da Tríade e descontentamento dos Países da Periferia com relação às pretensões das principais potências industriais.
Aliás, o Banco Mundial e o FMI, que dispõem de um poder considerável quando se trata de impor políticas de ajuste estrutural e o pagamento da dívida aos países da periferia, são débeis quando se trata de prevenir crises do tipo das de 97 no Sudeste Asiático, de 98 na Rússia, de 99 no Brasil, de 2000-2001 na Argentina e na Turquia. O quê dizer de sua capacidade de prevenir um krach bursátil no nível internacional… ou de relançar uma economia mundial tocada pela anemia em 2001.
Para terminar esta parte, uma característica da situação aberta pelo fracasso do AMI é a irrupção do movimento cidadão na agenda das negociações das grandes instituições e das grandes potências internacionais. Nestes dois últimos anos, não há uma única reunião dos “grandes” deste mundo que não tenha sido ocasião de manifestações de massa, e as últimas reuniões foram amplamente desorganizadas, ou mesmo paralisadas pelos manifestantes. Se a ofensiva neoliberal prossegue, ela vai passa a passo, com atraso na execução de novos planos, o que não deixa de inquietar os partidários do sistema.
A crise de legitimidade do G-8, do FMI, do Banco Mundial e da OMC é tal que eles deixam de se reunir com estardalhaço, como antes. Convocam reuniões muito mais restritas, nos endereços menos accessíveis à contestação: a OMC em Doha, no Qatar, em novembro de 2001; o G-8 de 2002 em uma aldeia perdida das Montanhas Rochosas no Canadá. O Banco Mundial, que teve de cancelar a reunião que deveria fazer em junho de 2001 em Barcelona, e o FMI, reúnem-se daqui por diante da maneira mais discreta possível.
Os que pretendem conduzir o mundo não têm nenhuma intenção de fazer concessões aos protestadores cada vez mais numerosos. Assim, combinam duas táticas para tentar conter o movimento: o recurso a uma repressão cujo vigor vai num crescendo, e campanha de difamação sistemática, que visa sujar a imagem dos protestadores (questionamento de sua representatividade e de sua capacidade de propor alternativas; amálgama entre a grande maioria do movimento e pequenos grupos violentos…), de um lado; e tentativa de cooptação de uma parte do movimento, em particular das ONGs, de outro.
Como dizia o ditador Napoleão Bonaparte: “Podemos fazer tudo com as baionetas, salvo assentar-nos sobre elas” (Gramsci traduziu isto de maneira menos trivial falando de hegemonia, de necessidade de consenso para garantir a estabilidade do sistema). A crise de legitimidade e a ausência e consenso alimentam a busca de soluções alternativas e amplificam as mobilizações. O uso repetido da violência policial, com seu cortejo de vítimas (inclusive de tiros) reduzirá ainda mais a legitimidade das instituições que pretendem conduzir a mundialização neoliberal.
Ao nível do movimento de protesto, vários fatores positivos se desenham neste momento. Primo, convergência entre movimentos sociais e organizações de natureza diferente (Via Campesina, ATTAC, Marcha Mundial das Mulheres, certos sindicatos, grupos de reflexão tais como o Fórum Mundial das Alternativas e o Focus on the Global South, movimentos contra a dívida, tais como Jubileu Sul e o CADTM…), convergência que desemboca em um calendário e em objetivos comuns: ver a este respeito a declaração do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2001.
Box: Os pontos de acordo entre os movimentos sociais no FSM de Porto Alegre (Janeiro de 2001)
Necessidade de uma alternativa democrática e internacionalista à mundialização capitalista neoliberal; necessidade de realizar a igualdade entre homens e mulheres; necessidade de aprofundar a crise de legitimidade do Banco Mundial, do FMI, da OMC, do Fórum de Davos, do G-7 e das grandes multinacionais; exigir a anulação da dívida do Terceiro Mundo e o abandono das políticas de ajuste estrutural; exigir a cessação da desregulação do comércio, opor-se a certos usos dos OGM (organismos geneticamente modificados) e rejeitar a definição atual dos direitos de propriedade intelectual em relação com o comércio (TRIPS); fazer oposição à política militarista (exemplo, ao Plano Colômbia dos EUA); afirmar o direito dos povos a um desenvolvimento endógeno; encontrar fontes de financiamento, na base da taxação do capital, começando por uma taxa de tipo Tobin; afirmar os direitos dos povos indígenas; necessidade de uma reforma agrária e de uma redução generalizada do tempo de trabalho; necessidade de um combate comum Norte/Sul e Leste/Oeste; promoção das experiências democráticas, como o orçamento participativo praticado em Porto Alegre.
Fim do Box
Secundo, implantação de redes de participantes do movimento na escala do planeta, ainda que de modo desigual (por exemplo, pela fraqueza do movimento na Europa Oriental, na China e na África). Tertio, entrada em um ciclo de radicalização de uma camada significativa da juventude, igualmente de maneira desigual na escala do planeta (as regiões em que este fenômeno está mais avançado são a América do Norte e o Sul da Europa, bem como a Grã-Bretanha e a Escandinávia. Manifestamente, o fenômeno se estende: a juventude se mexe e luta na Argélia – Kabylie -, na Coréia do Sul, no Peru, no México…).
Uma trama de subversão tecida no quotidiano
Este vasto movimento, criado por ocasião de acontecimentos marcantes, tece igualmente sua trama no quotidiano. As testemunhas se encontram, as experiências são contadas, os endereços são trocados. Tudo isto alimenta uma subversão fundamentalmente humana. Subversão: reviravolta das idéias e valores recebidos, diz o Petit Robert (dicionário francês). Recebidos, impostos? Nossa concepção dos valores é plural, pois os oprimidos não falam, felizmente, com uma só voz. É por isto que é fundamental valorizar “as outras vozes do planeta”. Mas nossas idéias não são as dos opressores, a pluralidade não inclui a submissão à palavra dos que perseguem uma lógica de lucro imediato. Em nome de quê deveríamos continuar a suportá-la?
As resistências se fortificam igualmente através das lutas nacionais: é preciso desfechar um golpe contra sua própria classe capitalista para enfraquecer o conjunto. As greves francesas do outono de 1995 iniciaram uma virada política da qual uma primeira (mas não suficiente) manifestação se concretizou nas eleições seguintes.
O movimento operário organizado luta pela redução generalizada do tempo de trabalho, para preservar as conquistas da seguridade social nos países industrializados e nos países da Periferia em que foram conquistadas (tanto no Leste quanto no Sul).
Os sem-papel da França, da Espanha e da Bélgica, no lugar de se esconder na clandestinidade, interpelam abertamente o poder para regularizar seus documentos de estadia.
A mundialização obriga – em um sentido positivo – cada organização realmente ligada à defesa dos interesses dos oprimidos a conectar-se com a atividade da organização vizinha. Como, com efeito, ser eficaz na defesa do direito de asilo, se não temos uma visão de conjunto da situação no Terceiro Mundo? Como conservar uma consciência de classe e não se aliar a “seu” patrão para salvaguardar o emprego em “sua” fábrica em detrimento dos operários do país vizinho, se não se abrindo aos debates planetários? Como uma Organização Não Governamental pode salvaguardar sua independência, senão exigindo, com outras associações, no seu próprio país, as reivindicações de justiça social que prega em países longínquos? Como marcar pontos contra a marginalização, o desemprego, sem dialogar com o movimento sindical?
Muitos lamentam ter de fazer face a interlocutores cada vez mais evanescentes: não é ao patrão local que é preciso se contrapor, é ao conselho de administração de uma multinacional, é ao fundo de pensão acionista principal; não é da autoridade pública nacional que é preciso desbaratar os planos, é de um conselho de ministros europeus ou do G-8. O período, é seguro, exige uma adaptação. Mas a força que pode ser utilizada para contornar os ditos incontornáveis é, ela também, potencialmente decuplicada, centuplicada. Toda a questão está em ter consciência e, sobretudo, ter a vontade política de pôr tudo em movimento para organizar esta força. É importante sublinhar que a vontade política não implica a ditadura interna: pelo contrário, a riqueza dos movimentos sociais reside na sua diversidade, na sua pluralidade. Esta riqueza deve ser totalmente garantida pelo respeito da maior democracia entre as componentes do movimento.
Obstáculos e novas formas de organização
No plano mundial, uma crise de representação do movimento operário se manifesta por uma crise de representatividade dos partidos de esquerda e do movimento sindical. Este último é cada vez menos capaz de garantir a defesa dos interesses dos trabalhadores e de suas famílias. Sua linha não convence mais os outros movimentos sociais a reunir-se em torno dele.
As organizações não governamentais, das quais algumas tinham tido nos anos 1970 uma radicalização à esquerda, são atravessadas igualmente por sinais manifestos de crise. Um grande número delas reingressam na órbita de seu governo e dos organismos internacionais (BM, ONU, PNUD).
A crise de representação se combina com uma dúvida profunda sobre o projeto emancipador. O projeto socialista, para mencioná-lo explicitamente, foi fortemente desacreditado pelas experiências burocráticas do dito campo socialista no Leste e pelos compromissos dos socialistas ocidentais com os capitalistas de seu país.
Ao mesmo tempo, as mobilizações sociais prosseguem, e até se radicalizam. Novas formas de organização e de consciência aparecem temporariamente, sem conseguir até aqui produzir um novo programa coerente. Mas seria um erro subestimar seu potencial de radicalidade.
Certo, se fosse preciso listar os fracassos dos movimentos sociais nos últimos anos, a soma seria pesada.
Mas a história das lutas emancipatórias não passa por uma simples contabilidade dos fracassos e das vitórias.
A crise que os movimentos sociais atravessam, nas suas diversas formas, pode desembocar em um novo ciclo de acumulação positiva de experiências e de consciência? Os acontecimentos dos últimos anos impulsionam um otimismo prudente, e convencem que, mais que nunca, não cabe ficar numa atitude de espectador.
Uma minoria de tomadores de decisão se esforça para expropriar a pessoa humana de seus direitos fundamentais para reduzi-la a um “recurso”; a sociedade para substitui-la pelo mercado; o trabalho para reduzir seu sentido de criação de valor a uma mercadoria; o social para substitui-lo pelo individualismo; o político para confiar ao capital e à sua corrida atrás do lucro imediato a tarefa de fixar as prioridades; a cultura para transformá-la em modo de vida “padrão”; a cidade para fazer dela o lugar do não-pertencimento. Face a esta expropriação, é tempo, para os milhões de pessoas e dezenas de milhares de organizações que lutam, de aprenderem a viver juntos, reconhecendo a real complementaridade e interdependência entre seus projetos, de organizarem e afirmarem a mundialização das forças de (re)construção de nosso devir conjunto, de difundirem a narração solidária deste mundo.
É tempo.
Exemplo de uma convergência: o Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (o CADTM, baseado na Bélgica)
O exemplo da resposta francesa em julho de 1989 tinha impressionado certas pessoas, que chamaram o escritor francês Gilles Perrault, um dos porta-vozes do movimento “ça suffat comme ci” (brincadeira com a expressão “ça suffit comme ça”, que tem o sentido de “já basta!”), para explicar o sentido do Apelo da Bastilha e da mobilização francesa pela anulação imediata e incondicional da dívida do Terceiro Mundo. Na Bélgica, era uma época de refluxo: os comitês de solidariedade passavam por dificuldades, os movimentos interprofissionais marcavam passo, cada setor estava marcado por derrotas parciais. O sucesso desta conferência, realizada em fevereiro de 1990, foi inegável, e permitiu descobrir uma vontade unânime de impulsionar na Bélgica um trabalho em torno desta questão, que poderia parecer à primeira vista tão distante das preocupações de cada um.
Desde a partida, o CADTM foi pluralista, não apenas no nível das opiniões políticas (socialista, cristã, ecológica, revolucionária), mas também no nível das estruturas (indivíduos, seções sindicais, ONGs, partidos políticos, associações diversas), e este é certamente um elemento-chave de seu vigor.
O caráter pluralista foi determinante para constituir o quadro unitário de todas as iniciativas (contatos e colaborações com outras associações, redação de manifestos e de petições, publicações, elaboração de bancos de dados, manifestações públicas…).
A fase de análise da problemática de endividamento foi também, desde o início, acompanhada por eventos públicos que deveriam abrir a fase de “mobilização”. Não esteve nunca em questão, para os membros do CADTM, formar apenas um escritório de estudos e pesquisas. Outros organismos se especializam neste domínio, e o CADTM pode agir então complementarmente com eles. Desde 1990, as campanhas do CADTM foram levadas por um público que se ampliava a cada iniciativa. Os nomes das campanhas falam por si mesmos: “Dívida do Terceiro Mundo: bomba de efeito retardado”, “Dívida do Terceiro Mundo nos tempos do cólera”, “Quando 40.000 crianças morrem a cada dia, não há um minuto a perder”, “Dívida do Terceiro Mundo: necessária solidariedade entre os povos”, “Do Norte ao Sul: o endividamento desvaraido” e a campanha em curso, “Abolir a dívida para liberar o desenvolvimento” (2000-2003).
O CADTM trabalha também como um coletivo de elaboração. Participou de numerosos comitês de redação de plataformas e de declarações no plano internacional. Em Madrid em 1994, em Copenhague em 1995, em Bruxelas em 1995, em Chiapas em 1996, em Manilha em 1996, na Ilha Maurício e em Caracas em 1997, em Saint Denis em 1999, em Bangkok, Genebra, e Dakar em 2000, em Porto Alegre em 2001, para citar alguns momentos importantes; ele pôde contribuir para enriquecer as análises, em diversos lugares do planeta. Estes exercícios de democracia e de estruturação são elementos-chave para romper o sentimento de isolamento e avançar na construção em comum de um projeto.
Uma especificidade do CADTM foi a de ser, desde o início, internacional e internacionalista. Internacional, é evidente, quando uma tal problemática é abordada. Todavia, em sua linha de conduta, ele se dedicava a retomar um movimento antiimperialista, um novo internacionalismo. Se este tinha pouca força neste período, sua reconstrução parecia mais urgente que nunca.
Enquanto o CADTM se construía pacientemente na Bélgica, abriu-se diretamente para os movimentos que existiam em outras partes ou que, como ATTAC, estavam sendo construídos a partir de 1998-1999. Cada vez que a ocasião se apresentava, “atores sociais” de outras regiões do mundo eram convidados e o CADTM, ele próprio, respondia aos convites do estrangeiro que decorriam dos primeiros contatos.
Progressivamente, o CADTM tornou-se uma rede internacional com membros individuais e comitês locais em vários países da Europa, da África e da América Latina (os contatos desenvolvem-se rapidamente na Ásia).
Isto não o impediu, ao contrário, de prosseguir num trabalho obstinado de formiga no nível local. Seja um professor que faz um chamado, uma paróquia durante a Quaresma, um grupo de desempregados, um antigo comitê de solidariedade, o CADTM responde ao chamado tendo sempre como referência os objetivos da compreensão, da tomada de consciência e da mobilização.
A partir de 1997-1998, uma vasta campanha internacional se desenvolveu em torno do tema do Jubileu 2000. Manifestações muito grandes tiveram lugar: Birmingham em maio de 1998 por ocasião do G-8 (cadeia humana de 70.000 pessoas), Colônia em junho de 1999 por ocasião do G-8 (35.000 pessoas levando 17 milhões de assinaturas pela anulação da dívida dos países pobres). Uma coordenação dos movimentos que, no Sul, lutam pela anulação foi constituída a partir de 1999. Trata-se de Jubileu Sul, do qual o CADTM participa. A campanha pela anulação da dívida tomou progressivamente um caráter de massa: na Espanha com a “consulta” realizada em março de 2000 pela Rede Cidadã pela Abolição da Dívida Externa (mais de um milhão de participantes), no Brasil com o referendum realizado em setembro de 2000 pelos movimentos sociais (6 milhões de votos). Iniciativas continentais e mundiais foram coroadas de sucesso (notadamente os encontros de Dakar: “África: das resistências às alternativas” e a “Primeira Consulta Sul-Norte”). O movimento não está disposto a parar.
À força de analisar os mecanismos da dívida do Terceiro Mundo, ao fio e à medida que os atores destes mecanismos e suas políticas se precisavam, o CADTM foi levado a ampliar seu campo de intervenção. Falar dos ataques frontais contra o sistema educativo e o sistema de saúde, da privatização, do desemprego, etc. no Terceiro Mundo, não tem sentido se não se consegue detectar na sua própria região as mesmas políticas em ação e combatê-las com igual resolução, mesmo que elas não se apliquem (ainda) com a ferocidade empregada alhures.
Para poder explicar a necessidade de um imposto sobre as transações especulativas na escala mundial, é preciso certamente voltar-se para a problemática da taxação das grandes fortunas no seu próprio país.
E, last but not least, isto significa que aquele que pode decodificar a injustiça do endividamento do Terceiro Mundo tem o dever moral de combater as dívidas públicas dos países industrializados. Estes organizam, com efeito, a mesma transferência de riquezas dos assalariados e pequenos produtores para a classe capitalista.
O CADTM, enfim, não substitui outras atividades. Apóia movimentos como ATTAC, Via Campesina, a Marcha Mundial das Mulheres, Jubileu Sul, os movimentos dos sem-papel, as Marchas européias… Ele se quer disponível para apoiar as coordenações que se criam pontualmente como reação a questões da atualidade.
A ação do CADTM é certamente modesta comparada à escala do desafio – é preciso deixá-lo bem claro – mas indica que é possível avançar para a construção de um movimento internacional que ajude ao mesmo tempo a pensar a grande transformação mundial em curso e a responder, pela ação, aos novos problemas que se colocam.
Para toda informação suplementar e todo contato: visite o site CADTM (em quatro línguas: francês, inglês, espanhol, neerlandês) na Web: http://users.skynet.be/cadtm.