Os mitos da imprensa liberal: denúncia e alternativa

Foto: Claudia Cardoso, manifestação dia 5 de outubro, em Porto Alegre, pela democratização da comunicação

No mundo inteiro, as empresas jornalísticas justificam sua existência a partir da idéia de que, sem elas, não existe democracia. Por esse raciocínio, a imprensa é necessária para cumprir três tarefas: 1) fiscalizar os governantes e os que aspiram a essa posição; 2) separar as verdades das mentiras; 3) proporcionar aos cidadãos o acesso às opiniões relevantes sobre os temas de interesse público.

Na avaliação de Robert McChesney, um dos mais importantes analistas de mídia dos Estados Unidos, essas intenções nunca estiveram tão distantes da realidade quanto no momento atual. Esse autor demonstra como a formação de grandes conglomerados no setor de comunicações, as políticas de gestão voltadas para a redução dos custos e a “hipercomercialização” do mercado editorial se somaram para fazer da mídia contemporânea uma instituição que contradiz, ponto por ponto, os pressupostos democráticos que legitimam sua existência.

McChesney busca na história dos EUA argumentos sólidos para desmontar os mitos que alicerçam o discurso liberal sobre a mídia. Seu livro assinala a presença, em toda a trajetória do país desde a independência, de “uma tensão crucial entre o papel dos órgãos de imprensa como empreendimentos comerciais e sua necessidade para a formação de cidadãos bem informados”. A idéia, tão cara aos liberais de hoje, de que Estado e imprensa livre não se misturam é apenas um mito. Na fase inicial da democracia norte-americana, a pluralidade de pontos de vista só foi possível graças a um vasto sistema de incentivos estatais – desde os subsídios ao papel e à importação de impressoras até a franquia do envio postal. Até hoje, as empresas de comunicação continuam a se beneficiar de políticas governamentais que favorecem os seus interesses.

A imprensa norte-americana dos primeiros tempos era assumidamente partidária. Isso não constituía um problema na medida em que, numa mesma comunidade, podiam circular até 15 jornais diferentes. “Se alguém estivesse insatisfeito com a linha editorial de todos esses 15, não precisaria ser um milionário para criar um 16º”, comenta McChesney. A grande mudança ocorreu no final do século XIX, quando a imprensa caiu sob o domínio de grandes empresas e a venda de publicidade passou a exercer um peso econômico cada vez maior. A pressão dos anunciantes forçou uma situação em que, na maioria das cidades, apenas um ou dois jornais sobreviveram. Com exceção de grandes metrópoles, como Nova York, e de áreas suburbanas antes inexistentes, nenhum novo jornal foi lançado nos EUA desde 1910.

As empresas de comunicação encontraram no tipo-ideal do jornalismo “independente” e “objetivo” um meio eficaz de adaptação à nova realidade. Não há inconveniente em existirem poucos jornais, dizia-se, desde que eles ofereçam informações isentas, ganhando assim a confiança de um universo heterogêneo de leitores. Para garantir a independência das publicações, surgiu a norma da “separação entre Igreja e Estado” – o princípio sagrado de que o conteúdo editorial deve permanecer imune aos interesses comerciais da empresa. Disseminou-se entre os jornalistas uma mentalidade de “profissionalismo” que dá suporte a essa concepção. Na prática, como muitíssimos estudos já demonstraram, a propalada autonomia editorial sempre esbarrou em limites concretos. A submissão da imprensa aos interesses das elites políticas e econômicas foi garantida por mecanismos como a seleção dos assuntos (ênfase nas pautas geradas pelos poderosos) e das fontes (exclusão das vozes críticas ao establishment).

Na atual era de neoliberalismo, mesmo essa imprensa falsamente objetiva está desmoronando diante da ganância incontrolável e da extrema competição. Nos EUA, a derrubada das leis anti-monopolistas (a “desregulamentação”) abriu caminho para um processo frenético de fusões e incorporações nos meios de comunicação, hoje concentrados nas mãos de gigantescos conglomerados. Para permanecer nesse jogo bilionário, os capitalistas precisam recuperar rapidamente seus investimentos e, para isso, tratam de modificar as regras e os acordos informais que vigoraram por mais de um século.

Aí reside, segundo o autor, a explicação para o rebaixamento brutal dos padrões de qualidade amplamente apontado pelos analistas de mídia. Em nome do enxugamento das despesas, um mesmo repórter agora produz matérias para jornais, revistas, TV aberta e a cabo, website, telefonia celular e o que mais venha a ser inventado. “A reportagem investigativa entrou para a lista das espécies ameaçadas”, escreve McChesney. “Ficou mais barato contratar jornalistas inexperientes para preencher o espaço com as declarações dos poderosos. Os repórteres investigativos se tornaram suspeitos, pois as empresas de mídia têm pouco incentivo para produzir reportagens que possam irritar seus anunciantes, acionistas e parceiros de negócios.”

A antiga “muralha da China” desabou com a invasão das redações pelos interesses comerciais. A penetração se dá por diversas portas de entrada, segundo McChesney. Uma delas é a influência crescente das assessorias de imprensa. Com as redações desfalcadas e povoadas por profissionais sem preparo, os releases são publicados como se fossem informações isentas. Outro meio de captura das redações pelo interesse financeiro são as “fontes de receita não-tradicionais”, matérias-pagas produzidas pelos mesmos órgãos de imprensa que, segundo o figurino liberal, deveriam fiscalizar as companhias. Para não desagradar os anunciantes, os veículos de comunicação evitam os assuntos polêmicos e se voltam, cada vez mais, para futilidades, para a vida mundana dos ricos e famosos. O “hiper-comercialismo” também empurra a mídia a dar destaque aos temas e aos interesses do público endinheirado, de classe “alta” e “média-alta”, mais atraente para os anunciantes. Desaparece, assim, a noção do jornalismo como um serviço público.

Nesse cenário, o “mundo corporativo” é quem ocupa o centro. As oscilações rotineiras da Bolsa de Valores são tratadas com tema de vital importância, apesar da indiferença da maioria da população por esse assunto. Os temas trabalhistas sumiram do noticiário. Lamentavelmente, observa McChesney, o boom do jornalismo de negócios não provocou um aumento da vigilância sobre os empresários. Ao contrário, a acumulação de riqueza é cultuada como um valor em si mesmo. Em qualquer assunto, as fontes empresariais têm prioridade.Os magnatas e os altos executivos são tratados com deferência servil, ao mesmo tempo em que se descartam os portadores de opiniões críticas. Os efeitos nefastos desse processo de deterioração se desnudaram no megaescândalo que envolveu, em 2002, algumas das maiores corporações empresariais dos EUA, entre as quais a Enron e a WorldCom. A imprensa fracassou vergonhosamente em seu papel de vigilância. “Apesar dos enormes recursos destinados ao jornalismo de negócios na década de 90, a imprensa deixou passar em branco todas as evidências das falcatruas que eram praticadas nos altos escalões da Enron”, escreve McChesney. Ele lembra que a prestigiada revista Fortune premiou a Enron como “a empresa mais inovadora dos EUA” em todos os anos entre 1995 e 2000.

Diante desse panorama sombrio, o que fazer? McChesney tem o grande mérito de propor soluções viáveis – ou, ao menos, dignas de discussão. Segundo ele, “não podemos ficar prisioneiros da idéia de que não há alternativa com exceção do Gulag”. Ou a tirania stalinista ou a opção igualmente antidemocrática de um “pensamento único” sob o controle dos Berlusconis, Murdochs e Marinhos. Sua proposta de democratização prevê duas vias convergentes. De um lado, investimento maciço do Estado em apoio a meios de comunicação não-comerciais – empreendimentos sem fins lucrativos, geridos por cooperativas de jornalistas, entidades comunitárias, municipalidades, grupos religiosos etc. Ao mesmo tempo, as autoridades devem instalar um amplo sistema público de mídia, com tecnologia moderna e recursos que o tornem capaz de competir com as redes comerciais. Tanto os problemas analisados por McChesney quanto as soluções por ele propostas vão muito além, como se percebe, do âmbito dos EUA. Pela sua relevância e atualidade, seu livro merece uma tradução brasileira, urgente.


Ficha técnica:

McChesney, Robert W. The Problem of the Media – U.S. communication politics in the 21st century. New York, Monthly Review Press, 2006.

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