Transposição: O Curso do Discurso Ou As Trans-POSIÇÕES foi o tema da oficina proposta pelo Forum Permanente de Defesa do São Francisco-Ba para esta quinta-feira, primeiro dia de atividades do Fórum Social Nordestino em Salvador
Participantes tentam construir cenário e estratégias comuns para um projeto polêmico, que mobiliza também estudiosos brasileiros.
Segundo pesquisadores da UnB, a falta de estudo pode comprometer gasto de R$ 4,5 bilhões e não resolver pobreza no São Francisco. Leia a seguir o artigo da Enolverde, baseado em informações da agência UnB:
Desde que o início das obras de transposição das águas do rio São Francisco foi autorizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em abril de 2007, as incertezas sobre o sucesso do projeto voltaram a preocupar a comunidade científica nacional.
Na Universidade de Brasília (UnB), seis especialistas da área procurados pela Assessoria de Comunicação garantem que, embora seja notória a necessidade de promover o desenvolvimento do interior nordestino castigado pela seca, a falta de estudos mais amplos sobre o rio São Francisco pode comprometer o investimento de R$ 4,5 bilhões.
Pesquisadores da UnB acreditam que a quantidade de água a ser transposta não é suficiente para a agricultura. De acordo com eles, a transposição deverá ser acompanhada por um grande conjunto de obras para as quais não existem recursos financeiros assegurados. E para piorar, pode ser que o rio perca sua vazão em 20 anos.
Confira abaixo as análises dos especialistas, divididas em três aspectos fundamentais: sistema físico, sistema biológico e sistema humano.
Sistema físico
Com 2,7 mil km de comprimento, o São Francisco nasce na serra da Canastra, em Minas Gerais, e tem sua foz na divisa entre Sergipe e Alagoas.
Durante o período de seca, de junho a agosto, pára de chover em toda a extensão do rio e a única forma que ele tem de se manter perene é por meio das águas vindas do Sistema Aqüífero Urucuia, no oeste da Bahia. Estas alimentam o rio por drenagem.
“O aqüífero é o pulmão do rio, mas em nenhum momento no Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (Rima) do Projeto São Francisco ele é citado. Qualquer impacto observado nas águas subterrâneas pode ameaçar todo o rio”, alerta o professor do Instituto de Geociências (IG) José Elói Campos.
De acordo com Campos, na divisa entre Bahia, Goiás e Tocantins, há uma área de agricultura irrigada com centenas de poços perfurados para uso das águas subterrâneas.
Se os poços continuarem a ser escavados com alta vazão de água bombeada, em vez de elas correrem em direção ao rio para alimentá-lo, passarão a ir no sentido contrário, para alimentar os poços.
“Desse jeito, em 20 anos o rio São Francisco poderá ter sua vazão do período seco do ano reduzida de forma significativa, e não haverá mais o que transpor”.
Sobre a vazão do São Francisco, o professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental Nabil Joseph Eid observa que o valor de 26,4 m³/segundo autorizado para transposição não é suficiente para sustentar a agricultura irrigada.
“Na época de seca, só a população das grandes cidades está garantida de receber água”, observa.
Eid mostra que a perda de água por evaporação ou infiltração será de quase 7m³/segundo, o que representaria 26,5% do valor autorizado para transposição.
De acordo com o projeto governamental, somente se a represa de Sobradinho, a 40 km de Juazeiro (BA), ultrapassar 94% de sua capacidade, o excedente também poderá ser usado na transposição até o limite de 127 m³/segundo.
“Só assim o volume será suficiente para a agricultura, mas com o consumo crescente de energia, fica cada vez mais difícil Sobradinho chegar a esse nível. E, se chegar, é muito provável que todo o Nordeste esteja em período de chuva”, diz ele.
Mesmo se a quantidade de água fosse suficiente para a agricultura, na visão do geocientista Geraldo Boaventura, não existem informações técnicas suficientes que garantam o sucesso da transposição.
“O solo nordestino é desconhecido, não se sabe se a transposição irá salinizar a água, o que a deixaria imprópria para o consumo humano e para a agricultura”, observa.
Sistema biológico
Para ser um projeto completo de desenvolvimento regional, com reflexos econômicos e sociais, a transposição deveria vir acompanhada de investimentos na revitalização do rio e em educação ambiental. Esse trabalho, no entanto, começou com atraso.
A revitalização deveria ter começado ainda em 1965, quando o Código Florestal foi editado.
A professora do Departamento de Engenharia Florestal Jeanine Felfili, entretanto, alerta para as dificuldades de financiamento: “Da forma como se pretende conduzir essa revitalização, não fica claro de onde virão os recursos”.
Segundo ela, o rio sofre atualmente com a construção de barragens, com a degradação das matas nativas e com a agricultura intensiva. “É preciso dar assessoria técnica aos produtores que atuam na bacia do São Francisco para evitar o assoreamento do rio”.
Além disso, muitas pessoas chegam a confundir os conceitos de transposição e revitalização, usando-os como sinônimos.
Mas enquanto o primeiro se atém ao deslocamento de parte das águas, o segundo busca manter o rio vivo para as gerações futuras, por meio de ações como reposição e não degradação da mata ciliar e tratamento dos dejetos sanitários lançados no leito.
Sistema humano
Na visão do professor do Departamento de Economia da UnB Jorge Nogueira, a transposição é ineficaz para o objetivo a que se propõe. “As origens da miséria do sertão nordestino vão além da falta de água. Lá também falta qualificação profissional e acesso ao mercado de trabalho, coisas que não serão solucionadas com a água”, lembra o especialista.
Para ele, se esse recurso fosse mesmo sinônimo de mais desenvolvimento, Belém e Manaus seriam capitais muito ricas. “Quando há água, as pessoas não ficam menos pobres. Talvez morram menos em decorrência da seca, mas a situação de miséria continua”.
Por isso, ele questiona o custo de R$ 4,5 bilhões do projeto, referente apenas à construção dos canais de transposição. As obras complementares que garantirão o desenvolvimento regional não possuem recursos financeiros assegurados nem cronograma estabelecido.
Entenda a transposição
Os recursos de R$ 4,5 bilhões do governo federal se destinam à construção de mais de 600 km de canais para levar as águas do São Francisco às áreas secas do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
O eixo leste vai até o rio Paraíba (PB) e abrangerá 220 Km, distribuídos em 168 municípios com um total de 4,5 milhões de beneficiados. O eixo norte segue até os rios Jaguaribe (CE) e Apodi (RN) e cobre 400 Km, distribuídos em 223 municípios com um total de sete milhões de habitantes beneficiados.
O que deve ser considerado
As críticas da UnB foram agrupadas sob três aspectos, que, segundo o canadense Asit Biswas, referência internacional em recursos hídricos, são os principais a serem considerados quanto à transposição de águas de uma bacia.
O primeiro refere-se ao sistema físico, que inclui a quantidade de água a ser transportada, as análises sobre águas subterrâneas, as mudanças de salinidade e alcalinidade e as conseqüências para a qualidade da água.
O segundo aspecto trata do sistema biológico, que abrange a biodiversidade em geral tanto matas ciliares quanto animais existentes.
O último consiste no sistema humano, que inclui agricultura, geração de energia, transporte, desenvolvimento de infra-estrutura complementar, efeitos antropológicos e implicações políticas do projeto.
Nas três categorias, garantem osespecialistas da UnB, muitas perguntas ficam sem resposta.
Rio São Francisco: incertezas da transposição
Muito interessante essa observação sobre o Urucuia. Se continuar a perfuração de poços, a água vai percolar em sentido contrário: do São Francisco para a região do Urucuia.
Isso destrói o argumento número 1 dos que combatem o Projeto São Francisco. Segundo eles, o subsolo do Nordeste é rico e tem capacidade para abastecer a região sem necessitar a transposição. Vemos que isso não é verdade.
Tampouco é verdade que os açudes dispõem de 37 bilhões de metros cúbicos de água que não são distribuídos por falta de rede. O apagão a que assistimos em 2004 mostrou que muitos desses 37 bilhões de metros cúbicos contêm pouca água.
E o clima do Nordeste? Ele faz com que os açudes percam por evaporação e por vertimento cerca de três quartas partes do volume armazenado.
Penso que o Projeto São Francisco é uma questão de humanidade. Devemos tirar um pouco dos que têm muito para levarmos para os que têm pouco ou não têm nada.