Ywy rupa: a territorialidade Guarani

Foto: Ricardo Casarini

Uma reportagem difundida em nível nacional, eivada de discriminação e preconceito contra os Guarani Mbyá, encheu de tristeza a aldeia do Morro dos Cavalos e levantou o problema da falta de conhecimento dos brasileiros sobre sua própria história, além dos interesses escusos que se escondem por trás de investidas racistas. Talvez seja, então, hora de realizar o encontro, verdadeiro, entre os povos autóctones e os não-índios.


Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

Faz muito calor apesar de ser abril. A sensação térmica é de 40 graus à sombra. Na aldeia de Morros dos Cavalos, em Palhoça, a uns 15 quilômetros de Florianópolis, Santa Catarina, os Guarani Mbyá estão dispersos em pequenos grupos embaixo das árvores, ou na sombra das pequenas casas. As mulheres sorvem, lento, o petynguá – cachimbo sagrado preenchido com fumo, planta tradicional Guarani – que permite o silêncio e a reflexão. Estão digerindo ainda as notícias vindas da terra dos juruá (os brancos). A informação de que o povo da aldeia não é “brasileiro”, divulgada pela revista Veja, causou profunda tristeza. Não pela nota em si, mas pelo fato de o jornalista que fez a matéria ter sido recebido amistosamente entre eles. “Ele chegou aqui junto com o Bensousan, que já é um velho conhecido da aldeia e anda por aqui, com facão na cintura, dizendo que esta terra é dele. A gente deixa ele andar por aí porque somos um povo amistoso. Não gostamos do conflito. Essa é a nossa força e nossa fraqueza”, diz Marco Karaí Djekupe, professor da escolinha da aldeia. Dias antes de sair a matéria, Bensousan já havia anunciado. “Vem uma bomba aí”. Mas os Guarani não ligaram. Agora, o cacique Werá Mirim, está em casa, rezando. Precisa da força do grande Nhanderu (Nosso Pai) para enfrentar mais este ataque. A aldeia está silente.


Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

No mundo não-índio, a indignação também é grande. Antropólogos e militantes sociais vivem um período de assombramento. Sabem que a notícia não é só um equívoco de um jornalista mal informado. A questão da demarcação de terras no Brasil tem gerado toda a sorte de violência, inclusive mortes. Além disso, grandes empresas estrangeiras vêm demonstrando interesse em áreas indígenas, muitas delas repletas de riquezas minerais ou mesmo de água, elemento mais disputado neste início de crise planetária. Não seria nada irreal, portanto, pensar que esses interesses podem estar agindo no caso dos Mbyá. A terra dos Guarani, na região de Florianópolis, se espalha por 1.988 hectares, desde a praia até o rio Massiambu Pequeno (leste – oeste), desde o rio Massiambu até a Enseada do Brito (sul – norte). Não é apenas a estreita faixa de terra ruim, com apenas quatro hectares, onde hoje está a aldeia. As fases de identificação e delimitação, que integram o processo de demarcação das terras indígenas no Brasil, já foram realizadas e até bem pouco tempo tudo estava acertado para a oficialização.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

A cultura Guarani é difundida na oralidade, dentro da Casa de Reza, o lugar mais importante da aldeia. Todos os dias, faça chuva ou sol, as famílias se reúnem para ouvir as histórias dos antigos avós, os segredos da terra sem males, as regras do bem viver. O Opy (Casa de Reza) é o centro da vida. É na hora da reza que todas as almas Guarani se encontram e se consolam. É quando se pronunciam as palavras antigas, só conhecidas por eles. É quando se fala com deus e com os espíritos das gentes que estão em outras aldeias. É hora sagrada. “A única coisa que uma comunidade Guarani não pode nunca abrir mão é da sua Casa de Reza. Não importa onde ela esteja. Temos o exemplo de uma aldeia que está na periferia de São Paulo, no meio dos não-índios. Mas essa aldeia tem sua Casa de Reza e lá as pessoas vão escutar as palavras antigas, para que a nossa cultura nunca morra”, diz Marco. Ele, assim como muitos dos seus, sabe que hoje é muito difícil viver na pureza das matas, como outrora. O mundo dos brancos está à volta e não há como fugir dele. Muita coisa boa pode ser aproveitada, muita coisa ruim também chega. Mas, se houver a Casa de Reza, a cultura viverá. No Morro dos Cavalos, o opy é feita tal qual antigamente. De terra batida, coberta com taquara. As 30 famílias que ali vivem, rezam todos os dias. E agora mais. Porque a ação dos juruá pode pôr a perder toda a resistência e a luta que travaram até agora.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A disputa de terra na região do Morro dos Cavalos não é de hoje. O que acontece é que os Guarani não têm tradição de peleia. Como sua forma ancestral de vida é a mobilidade, eles não se importam em sair de um lugar e ir para outro, caso os brancos ocupem terras próximo a eles. As histórias dos viajantes que passaram por esse território já registram a presença Guarani desde 1504. E isso só considerando os olhos brancos que os viram. Segundo seus próprios relatos, desde que seu povo veio do “grande opy” do paraíso, essa é a terra que lhes cabe. Antropólogos que estudam essa área também registram ocupações Guarani em vários pontos da região do Massiambu, desde há muito tempo. A partir dos anos 70 do século XX o valor da terra fez crescer o olho da gente branca. É que a construção da BR 101 cortou a área e acabou valorizando-a. Naqueles anos, havia uma aldeia Guarani e, ao ver chegar as máquinas e o povo juruá, os “tcheramõi” (os mais velhos) ficaram preocupados, mas a área não foi abandonada. Grupos Guarani passaram e acamparam. Grupos Guarani ficaram. Na década de 1990 outras famílias chegaram ao Morro dos Cavalos com Werá Mirim, o atual cacique. “Muitas vezes um branco chega e oferece algo para as famílias saírem da terra, pode ser um bem qualquer, como um fogão, ou até dinheiro. O povo aceita e sai porque, para ele, a terra é de todos e qualquer pessoa pode viver em qualquer lugar. Eles se movem e vão para outro espaço, mas sempre dentro de um território tradicional que vai desde o Uruguai até a Bolívia, passando pelo norte da Argentina, leste do Paraguai, vindo até o Brasil, pelo Mato Grosso do Sul até o Espírito Santo, daí, todo o litoral até o Rio Grande do Sul”. E essa é a história que os Guarani contam sobre a “venda” de uma parte da terra do Morro dos Cavalos para Walter Alberto Bensousan. Dizem também que ele deu dinheiro para um Guarani, como se tivesse comprado a terra de um índio. “Agora, o juruá vem e diz que é dono da terra. Para o Guarani não houve venda e a terra segue sendo dele”. Mas, para entender isso é preciso ter muita clareza da cosmologia Guarani. O fato é que, com o tempo, desde a chegada dos imigrantes, o território foi sendo ocupado por não-índios e com a duplicação da BR, mais valorizada ficou a terra. Como para o índio ela não tem um valor monetário, ele não consegue compreender toda essa disputa.


Mbyá kuery Ywy (na terra guarani
)

Uma antiga história Guarani conta sobre a diferença entre o Guarani e o juruá. Dizem os mais velhos que todas as almas guaranis vivem juntas num grande opy que fica no paraíso. Fora do grande opy existe uma enorme árvore, frondosa e verde, onde vivem os outros seres vivos. Quando Nhanderu decidiu povoar a terra estabeleceu a seguinte ordem: sempre que nasce um Guarani na terra, a alma dele é puxada do grande opy, já os animais e o juruá vêm da árvore. Mas, para os Guarani, os seres que vivem, mesmo não tendo saído do opy celestial, merecem todo o respeito. Por isso têm como tradição o não-conflito. Porque, para eles, a vida é sagrada. Também está fixado na mente Guarani que o território terreno que lhes foi dado por Nhanderu é esse espaço entre o Rio Grande do Sul e a Bolívia, sendo que o centro mítico é o Paraguai. Seria mais ou menos como os povos andinos consideram Cuzco sua capital central, ou como os católicos, muçulmanos e judeus entendem Jerusalém como o centro de sua religião. Por isso que cada guarani se sente filho daquela região, o Paraguai, porque ali é centro de seu mundo. Assim como um judeu, mesmo vivendo em Nova Iorque, se diz filho de Sião, um Guarani, vivendo em qualquer lugar, sempre vai ser filho do Paraguai.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A terra do Morro dos Cavalos, de ocupação tradicional dos Guarani, passou por estudos de um Grupo Técnico designado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), através da Portaria 839/PRES, em 16 de outubro de 2001. O trabalho foi coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira e aprovado pela Funai através do Despacho nº 201 de 17 de novembro de 2002. O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação feito pelo GT teve seu resumo publicado nos diários oficiais da União e do Estado de Santa Catarina (em dezembro de 2002 e março de 2003, respectivamente). Feito isso, deu-se início a fase do contraditório, que é o período em que qualquer pessoa pode apresentar manifestações à Funai, seja para pedir indenização ou para apontar vícios no relatório, conforme estabelece o Decreto 1.775/1996. Houve algumas manifestações, entre elas a da Fundação do Meio Ambiente (Fatma), órgão ambiental do Governo de Santa Catarina; a do representante do Ministério Público do Estado em Palhoça, e a de Walter Alberto Sá Bensousan. Passados 90 dias, a Funai encaminhou, para o Ministério da Justiça, os autos do processo administrativo nº. 08620.002359/1993/06, com pareceres contrários às manifestações apresentadas. A Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, através de seus advogados, apresentou parecer favorável à publicação da portaria ministerial declarando como terra indígena os 1.988 hectares propostos pelo Relatório Circunstanciado do GT da Funai. Tudo parecia apontar para um desfecho favorável de demarcação da área Guarani.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

O povo Guarani nunca fez divisão entre eles mesmos. Não se apontavam como Mbyá, ou Nhandeva, ou Kaiová. Estas diferenças foram postas pelos olhos dos brancos. Um exemplo são os chamados Carijós, que povoavam a região de Santa Catarina e que alguns insistem em dizer que estão extintos. Na verdade, os Carijós eram os Guarani. Como usavam um determinado tipo de pena para se adornarem, os brancos identificaram como sendo de Carijó, e daí veio o nome. Mas, na verdade, as aldeias vistas pelos primeiros brancos eram do povo Guarani. “Nós nunca nos importamos muito com os nomes dados pelos brancos. Porque nós sabemos quem somos. Mas, quando vem um juruá e espalha esse monte de mentira, que os Carijós estão extintos e que nós não somos daqui, é preciso explicar muito bem”, diz Marco Karai Djekupe, referindo-se a matéria da Veja que insiste nessa versão, “acusando” os índios que vivem no Morro dos Cavalos de serem estrangeiros, portanto, sem direito à terra. “Agora estamos aqui, vivendo essa humilhação, mais uma das tantas a que já fomos submetidos nestes 500 anos. Nosso povo está confuso e triste. Todos temem que isso atrase a demarcação”.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

Em outubro de 2005, quando o processo de demarcação do Morro dos Cavalos já estava pronto para ser assinado, o Procurador de Estado, do Estado de Santa Catarina, Loreno Weissheimer, encaminhou diretamente à Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, fora do prazo de contraditório, um pedido de suspensão do processo. Segundo ele, haveria provas de que a terra em questão não era tradicionalmente ocupada pelos Guarani. Por conta disso, em 02 de fevereiro de 2006, a Consultora Jurídica Substituta, Cristiane Schineider Calderon, através do Despacho GAB/CJ nº 175/2005, às fls. 899 do processo nº 08620.002359/1993-06, determinou que o processo de identificação e delimitação da terra retornasse à presidência da Funai, sugerindo que o parecer fosse reavaliado. Agora tudo está parado novamente, com os prazos legais sendo violados, segundo denuncia o Conselho Indigenista Missionário, Cimi. Também causa estranheza ao Cimi o fato de o processo, sob o nº 08620.002359/1993/06, ter sido analisado por um servidor do Corpo Técnico Jurídico da Consultoria Jurídica que apresentou manifestação favorável à continuidade do procedimento, sugerindo inclusive a declaração da área como terra indígena pelo Ministro de Estado da Justiça. Também se sabe que esta manifestação foi aprovada pelo Consultor Jurídico e devolvida ao Gabinete do Ministro. Todo esse trâmite já havia sido feito quando a procuradoria do estado de Santa Catarina colocou objeções. Portando, no entendimento do Cimi, só o próprio ministro poderia decidir se acatava ou não o requerimento. “O projeto tinha que andar para frente e não para trás”, diz o advogado Cláudio Luiz dos Santos Beirão, em um amplo parecer divulgado pelo Cimi. Não é à toa, portanto, que um tema tão controverso, apareça em nível nacional, e de forma tão desfavorável para os Guarani.


Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

Uma pessoa do povo guarani não tem na cabeça os mesmos conceitos que o juruá, daí a necessidade de se ter clareza da cosmovisão desta etnia. Para um Guarani é absolutamente incognoscível a idéia de fronteira. Eles não se dizem gaúchos, catarinas, paranaenses, paulistas, capixabas, matogrossenses, uruguaios ou bolivianos. São Guarani e circulam por Ywy Rupa, como eles denominam o território Guarani. “Para você eu nasci no país Argentina. Para mim não, para mim não tem só um Paraguai, tudo isso aqui é mundo Paraguai. Tudo é Paraguai, porque nós não temos bandeira, não temos color [cor]. E para mim Deus deixou tudo livre, não tem outro país. Tem Paraná, tem quantas partes o Rio Grande. Do outro lado já é outro país, mas para mim não tem outro país, é só um país. Quando uma criança nasce aqui no Brasil, nasce lá no Paraguai. Quando nasce no Paraguai, ela nasce aqui também. Só um país. É igual. Porque a água, por exemplo, esse rio é grande já [mostrando o rio Três Barras], mas só em cima está correndo, por baixo é o mesmo, a terra. Ywy rupa é tudo isso aqui, o mundo”, explica muito bem Roque Timóteo, em depoimento à antropóloga Maria Dorothea Post Darella. Ywy rupa é, então, o mundo no qual se encontram as aldeias atuais, os caminhos percorridos e os lugares ocupados pelos antepassados, onde estão as áreas sonhadas, os espaços temporariamente desocupados e os locais a serem ainda apropriados. Compreender isso é entender a alma Guarani.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A duplicação da BR 101 abriu mais um espaço de discussão acerca da terra do Morro dos Cavalos. Em 2005, o Tribunal de Contas da União (TCU) analisou uma representação que denunciava possíveis irregularidades na escolha do projeto de transposição das famílias, e exigiu que fossem feitos estudos. Mas, não entrou na questão se é ou não terra indígena, apenas aconselhou novos estudos para evitar ilegalidades. Por outro lado, o Ministério Público Federal em Santa Catarina tem ingressado com ações civis públicas para determinar à União, na pessoa do Ministro de Estado da Justiça, o cumprimento da lei no que diz respeito a diversos processos administrativos de demarcação de terras indígenas. E a Justiça Federal em Santa Catarina, especialmente a seção judiciária de Chapecó, tem concedido liminares nessas ações para determinar que o Ministro da Justiça decida, sob pena de multa diária em caso de descumprimento, mas ainda nada acontece. O que parece é que enquanto a Funai não reafirmar a decisão acerca de que este é um território tradicionalmente ocupado pelo povo Guarani, a incerteza vai continuar, assim como os conflitos envolvendo agricultores da região. Segundo os Guarani são aproximadamente 50 famílias de juruá que vivem dentro da área a ser demarcada. Nenhuma delas usou do direito de fazer um contraditório. E os próprios Guarani têm gestionado junto ao governo para que todos tenham suas benfeitorias indenizadas. “Não queremos deixar essa gente na mão”, diz Marco Karaí Djekupe.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

As 144 almas que hoje vivem no Morro dos Cavalos rememoram sua história desde o princípio dos tempos e sabem que este é um território que lhes pertence por tradição. As marcas do seu povo estão em cada parte dos caminhos. Não há como contestar, muito menos acusando os antropólogos de falsear a realidade. É impossível ignorar os sinais. O fato é que o branco não tem a mesma relação com a terra como o Guarani tem. Para o povo autóctone, terra é sinônimo de vida. Por isso, a idéia de compra e venda não encontra eco. “É claro que sabemos que estamos rodeados pela cultura juruá. E tem muitas coisa boas aí. O que é bom a gente pega. Mas o que é ruim, não precisamos aceitar”, diz Marco. Ele lembra que há pouco, por conta da ampliação da estrada, tiveram que ser indenizados por parte do governo federal, na soma de 11 milhões. Esse dinheiro está na Funai. Depois, eles foram convencidos de que poderiam comprar terra com esse recurso. Foi muito difícil ultrapassar esse portal. Se a terra é deles, como comprar? “O certo é que estamos metidos nesse mundo de branco e se não o fizéssemos, ficaríamos sem a terra. Essas são mudanças muito significativas para nós. De difícil assimilação. E isso vai mudando a gente. Mas não é porque queremos. É por conta da cultura do juruá”.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A antropóloga Maria Inês Ladeira, do Centro de Trabalho Indigenista – CTI, que coordenou o grupo de trabalho do processo de demarcação, não têm dúvidas de que a aldeia do Morro dos Cavalos, assim como outras aldeias Guarani, se insere na rede de relações de consangüinidade e de afinidade que integram parentelas e grupos residenciais dispostos em diferentes localidades nas regiões sul e sudeste do Brasil (do RS ao ES), em Misiones, na Argentina, e no nordeste do Paraguai. “Estas relações definem o território ocupado pelo povo Guarani, tal como testemunharam seus primeiros cronistas, muito antes das classificações vigentes na etnografia atual, e antes mesmo da definição das fronteiras nacionais que vieram sobrepor-se aos territórios indígenas. Portanto é comum encontrar nas aldeias Guarani (tanto no Brasil como na Argentina ou no Paraguai) indivíduos e/ou famílias que moraram ou nasceram em diferentes Estados nacionais. A complexa dinâmica de mobilidade Guarani não se fundamenta tão rudemente em critérios essencialmente utilitaristas (programas assistenciais, políticas públicas e legislações favoráveis), lembrando que enfrentam dificuldades enormes em todas as unidades administrativas nacionais (províncias, estados, departamentos) estabelecidas no seu território, não sendo atualmente o Brasil um modelo ideal. É notória a violência impingida aos Guarani no Mato Grosso do Sul, em Ocoí, no Paraná, em Araçaí em Santa Catarina, além da paralisação dos processos demarcatórios e das ações judiciais no litoral”. Maria Inês entende como um contra-senso reconhecer o povo Guarani como um povo que manteve idioma, religião e conhecimentos profundos sobre a flora e a fauna da Mata Atlântica, e não reconhecer sua ocupação tradicional em nenhuma das terras que ocupam atualmente. “Torna-se sim importante, neste momento, levantar quais os interesses que pesam sobre as terras ocupadas pelos Guarani, uma vez que, de modo extemporâneo, se buscam argumentos de qualquer tipo para tentar descaracterizar a tradicionalidade de sua ocupação em todas elas”.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

Na aldeia do Morro dos Cavalos os Guarani esperam, na mansidão. Eles não olham nos olhos, não porque são dissimulados ou fugidios. É porque vivem num outro ritmo. Acham agressivo. Preferem falar pouco, cabeça baixa, pesando bem as palavras. Demoram na resposta porque é preciso que as idéias amadureçam. Desconfiam dos brancos porque reiteradas vezes são enganados. Mas ainda assim, mantêm a velha tradição de acolher e aceitar o outro, mesmo que tenha vindo da “grande árvore” e não do opy. Nestes dias de começo de outono se preparam para o descanso de deus, quando ele fica sozinho na casa de reza. É que na cultura Guarani existem apenas dois tempos no mundo: o ara pyau, tempo de calor, quando se planta o milho e se desenvolvem múltiplas atividades; e o ara ymã, tempo de frio, quando deus fica trancado na casa de reza. Agora, eles estão assim, como seu próprio deus. Trancados na casa de reza, esperando que o juruá compreenda. Negam-se a ser objetos que são despejados em aldeias indicadas pelos brancos. Eles sabem onde precisam caminhar e onde podem parar para fixar morada. Hoje é ali, mas pode mudar amanhã. O que importa é que seja no seu território, esse, imemorial, que vive dentro de cada um.

Juruá kuery Ywy (na terra de branco)

A decisão da consultora jurídica substituta do Ministério da Justiça em mandar de volta o processo para a Funai abre um grave precedente que pode respingar na demarcação de outras terras indígenas no restante do país, inclusive aquelas que são cobiçadas por empresas estrangeiras, como é o caso da Aracruz Celulose, no Espírito Santo. Por isso, a luta agora é para que a Funai reenvie o processo para o Ministro da Justiça, responsável pela assinatura da portaria declaratória e que, de uma vez por todas, sejam demarcadas as terras. Segundo a antropóloga e doutora em Etnologia Indígena, Juracilda Veiga, da coordenação geral de defesa dos direitos indígenas da Funai, não há como definir prazos para o reenvio do processo ao Ministro. Ela lembra que o órgão está bastante sucateado, com apenas seis antropólogos para cuidar de todos os problemas no país inteiro. “Não há concursos e os salários são muito baixos. Quem pode, busca outros caminhos. Além disso, estamos em período de mudança de direção, e até que tudo se acerte, as coisas ficam em suspenso”. Juracilda comenta que o fato de o processo ter voltado, mesmo depois de encerrados os prazos do contestatório, é excepcional, mas algo possível. “Existe a lei, mas as decisões são políticas. O ministro tem a prerrogativa de pedir a complementação dos dados se os achar insuficientes. Acredito que a pressão tem de ser feita lá, no ministério”.

Mbyá kuery Ywy (na terra guarani)

O nome do lugar onde hoje está a aldeia Guarani, às margens da BR, tem uma simbologia extremamente afinada com o drama da gente que, agora, ali vive. É nome de branco, mas evoca um sentimento que qualquer etnia tem no coração. Foi dado durante a guerra dos farrapos quando uma tropa de revolucionários deixou ali os cavalos e foi dormir. Quando raiou a manhã, os cavalos haviam sumido. Tinham tomado o rumo da liberdade, galopando, sem amarras, pelo monte. Nunca mais foram pegos. É por isso que o lugar chama-se morro dos cavalos. Hoje, ali, já não há mais cavalos livres. O que existem são pessoas, também buscando encontrar a liberdade de ser o que são. Crêem que, depois de 500 anos sendo aviltadas, e agora confinadas a reservas, seja a hora de um pouco de dignidade. Querem ser livres para andar no seu grande território, e nunca, jamais, serem chamadas de estrangeiras. Porque não o são.

Ler também: carta do Cacique Artur Benite sobre reportagem da Revista Veja

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *