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No atual momento histórico, a questão da água, substância essencial a qualquer forma de vida, assume uma dimensão estratégica em todo o planeta. As discussões sobre sustentabilidade a nível mundial e o cenário – para o presente e não mais para um futuro remoto – dos problemas na saúde e do esgotamento das fontes não-renováveis de energia mistura-se invariavelmente com a carência de água potável em todo o mundo. O assunto assume grande gravidade e se impõe não só na atuação já famosa das ONGs ambientais, mas também como parte integrante das agendas das nações e dos blocos internacionais, delineando o crescimento do seu caráter geopolítico.
Um panorama do debate global
Os últimos anos acompanharam uma ampliação do debate na sociedade civil através dos meios de comunicação globais, progressivamente adquirindo influência sobre as decisões mais diversas e mobilizando a opinião pública. Instituições como a Organização Mundial de Saúde advertem sobre os problemas de acesso à água limpa atingindo hoje mais de um bilhão de pessoas, e as projeções realizadas pela ONU são trágicas: crê-se que para o ano de 2025 somente 60% da população mundial tenha acesso a essa fundamental ferramenta de sobrevivência o quadro torna-se crítico. A mídia traz ao cidadão dados assustadores: as doenças ligadas à falta de água (diarréia, por exemplo) são as principais causa mortis infantis, matando mais do que a AIDS.
O panorama da superpopulação, da emissão excessiva de dióxido de carbono, do controle do consumo em massa e o mau-uso da água na atual sociedade de massas geraram impactantes conseqüências para o cotidiano: o aumento das temperaturas em todo o mundo (com o degelo dos pólos e aumento do nível do mar), dos conflitos sociais e militares por conta da obtenção da água, além do aumento da preponderância desta nas decisões econômicas e políticas. O problema da água também dialoga com a dificuldade das crises energéticas, no momento que a purificação da água é um processo que utiliza larga quantidade de energia.
Geopoliticamente falando, em cada continente destacam-se questões que conectam todos estes fatores no desenvolvimento nacional e influenciam de maneira crucial o bem-estar: o aqüífero Guarani, por exemplo, localizado entre o Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai, com um volume de aprox. 40,000 km³ é uma importante fonte de água potável. Outra core-zone fundamental do subcontinente que permite pensar o quão significante pode ser uma região desta para o futuro sustentável das nações envolvidas é a Amazônia. Portanto, dada à escassez do recurso no final dos anos ’90 e início do milênio, na esfera das mais variadas relações sociais, políticas e econômicas nacionais e interestatais, ficam claro alguns pontos importantes:
>>> Os avanços da iniciativa privada nas concessões sobre os mananciais e distribuição das águas assumem formatações irresponsáveis e trazem conflitos étnico-sociais envolvendo desde pequenas localidades até a soberania do Estado-Nação, além de uma incapacidade em satisfazer o consumidor sobre o preço e a qualidade da água. Exemplos como os protestos da Guerra da Água na Bolívia (Cochabamba, empresa Bechtel x movimentos sociais) ou da Argentina (Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba, SUEZ x movimentos sociais) demonstram a fragilidade do sistema atual de concessões na América do Sul;
>>> Cresce a insatisfação dos críticos do capitalismo na sua atual fase para com as instituições responsáveis pela degeneração da camada de ozônio, cujo dano é derivado da emissão de gases nocivos inclusive à saúde: entram em oposição em nível mundial a opinião pública e a comunidade internacional contra a política das grandes multinacionais e da negativa norte-americana com relação ao Protocolo de Kyoto (1997);
>>> Ganha ainda mais força um filão significativo do mercado de produtos: a água engarrafada. Tido como um setor dinâmico e lucrativo no campo dos alimentos e bebidas (cresce cerca de 10% ao ano) este envolve também a manipulação de materiais sintéticos. As garrafas, feitas a partir do petróleo e do gás natural, necessitam de cerca de 1,5 MI de toneladas de plástico para serem fabricadas. Assim, introduzem-se no ciclo de industrialização da água elementos perigosos como a poluição residual na etapa de produção (fazer plástico causa problemas de saúde para a população e danos ao meio ambiente) e pós-consumo (percentual baixo de garrafas recicladas e velocidade lenta de decomposição na natureza).
No mesmo passo dessas questões o aumento das temperaturas, que somado ao ritmo de vida estressante e ao alto custo de vida das metrópoles emparedam o consumidor. A tecnologia torna-se uma ferramental possível no bem-estar desse consumidor, e um subfilão de derivados – as águas aromatizadas, por exemplo – ganham espaço com rapidez, no mercado dos “lights”, produtos estratégicos para um variado público, preocupados com a sensação de saúde e a manutenção da auto-estima através da estética.
Algumas tendências possíveis
Nos últimos anos, o mundo assistiu a um refluxo a esse sistema, em movimentos e querelas cujo motor é a necessidade urgente de uma nova ordem para a água. Desde a oposição norte-americana do ex-vice-presidente Al Gore ao stablishment da liderança poluente dos EUA até os movimentos alternativos e os atentados contra a água no Oriente Médio conformam um cenário mundial a ser acompanhado.
Ás vésperas do Dia Mundial da Água, em 22 de Março, registra-se uma data histórica que corrobora com estes processos de procura por transformações. Enfrentar a insuficiência de água permite uma série de discussões estruturais amplas e profundas, como a equidade da distribuição do recurso para as finalidades mais diversas ou as questões tocantes à proteção ambiental e ao aquecimento do planeta. Indiscutivelmente, a ausência de políticas globais para o tema é colocada em pauta e surge uma verdadeira enxurrada de proposições das mais diversas, seja nos meios de comunicação ou nos encontros nacionais e internacionais. Nestes encontros e na fala de especialistas são perceptíveis duas fortes tendências:
>>> A racionalização da quantidade de água, desde a etapa de produção até medidas de restrição do consumo e uso doméstico. Concretamente, seria um exemplo permanente de racionalização, com medidas governamentais de estímulo à economia e ao uso racional do recurso, como o modelo utilizado em Nova York;
>>> O aumento no valor da água: estabelecer-se-iam tarifas extras para as empresas de saneamento, de acordo com a quantidade usada. Estes recursos seriam invertidos na gestão dos próprios mananciais. Há, nessa perspectiva, um risco evidente de submeter-se a população mais pobre a um custo de vida acima do que hoje já é insustentável.
O que se torna perceptível nas duas perspectivas é a necessidade de políticas duradouras. Um exemplo desse tipo de política na esfera do Estado pode ser encontrado na ação do governo de São Paulo, em 2005. A medida consistia em programar 20% de desconto no valor da conta mensal aos que conseguissem conservar-se abaixo da média de consumo dos últimos 6 meses. A campanha foi abandonada assim que acabou a estiagem que motivou a medida, uma demonstração clara da falta de perspectiva em longo prazo.
A emergência da questão no cenário nacional
Pesquisas realizadas por observatórios internacionais sobre como a elevação do nível do mar afetaria o mundo incomoda invariavelmente o Brasil, na sua condição litorânea absolutamente extensa. Nesse sentido, estudos direcionados demonstram que o aumento de aproximadamente meio metro poderia interagir drasticamente com as atividades de lazer, comércio, transportes e até mesmo sobrevivência. Mais dramático que a possível quebra do invólucro das belezas naturais abundantes, a poluição ambiental pode arrasar outros espaços não tão privilegiados: as populações menos abastadas das grandes cidades.
O dia-a-dia dessa população pobre poderia sofrer danos que já sofrem, mas em incalculável amplitude: o assoreamento dos rios urbanos com o lixo que provoca enchentes, doenças e congestionamento do tráfego, ou a moradia localizada em encostas poderia ser sensivelmente afetada pelo desequilíbrio ecológico das chuvas. São exemplos de questões que afetarão ainda mais os cidadãos, e que dependem da tradicionalmente ausente participação dos governos no planejamento, prevenção e nos cuidados ao lidar com estes problemas.
O Brasil, um dos países mais ricos do mundo em reservas hídricas, com mais de 13% da água doce disponível se encontra em uma situação potencialmente crítica. A concentração de mais da metade deste recurso natural se localiza em duas áreas de baixíssima densidade demográfica: a Amazônia e da bacia do rio Tocantins. Essa visão de abundância se contrasta com regiões do nordeste que amargam longas e intensas secas, com pífio sistema de irrigação e a formação de uma consistente elite que mantém o status quo da chamada “indústria da seca”. A situação é em certo sentido paradoxal – senão contraditória – frente à consideração da ONU sobre o modelo brasileiro de gestão da água, tido como um bom exemplo. Enquanto o desperdício é intenso nas regiões mais ricas do país, em localidades pobres do nordeste a ajuda dos deuses é esperada com romarias e eucaristias no Dia Internacional da Água. Segundo relatório divulgado por ocasião do Fórum Mundial da Água no ano passado, 57 milhões dos 190 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável.
Mesmo diante desse quadro, os esforços governamentais são reduzidos ainda. O ministério do meio ambiente assina um Pacto Nacional pela conservação das águas, uma carta de princípios pela qual se comprometem os integrantes com o esforço conjunto de uso inteligente da água. Sobra um panorama ainda instável, irregular e perigoso.