Por um Equador acima das concepções inconscientes

Foto: Indymedia Equador

O evento da Constituinte que entra em consulta popular no Equador no dia 15 de Abril de 2007 traz muito mais do que meras questões institucionais, ou quiçá discussões sobre o progresso no país. Determinar o futuro e a legitimidade de instituições como o congresso, ou até mesmo a constituição – tida como uma das mais “progressistas” do continente – são os pontos centrais para a concepção de um Estado legítimo. Além disso, são questões amplamente influentes nas disputas políticas deste país andino. Há de se considerar, entretanto, que existem outras perspectivas em questão.

O novo momento político – sem esquecer a face social e cultural – da América do Sul no início do Século XXI trouxe a tona o fenômeno da ascensão de novos tipos de movimento sócio-político, derivando em governos que enfatizam as questões sociais. Podemos citar o caso boliviano (Morales/2006) e o venezuelano (Chávez/1999, com tentativa de golpe contra o seu governo em 2002) como expoentes do assim chamado Socialismo do séc. XXI são exemplos de modelos preocupados com as questões esquecidas na década de 90, como o revitalização do Estado-nação como paradigma (ou a revisão da sua sustentação ideológica) e a integração regional. Nesse sentido, dada a opção prioritária de representar os movimentos sociais de base, emerge na agenda do presidente Rafael Correa a premissa de que as mudanças propostas na constituição são necessárias para sanear as desigualdades socioeconômicas urgentes do Equador, e mais que isso, que elas devem atender diretamente as expectativas desse imenso bolsão marginalizado.

É imprescindível dizer que as reformulações propostas também trazem a frontalidade das disputas de etnia e classe – por vezes indissociáveis, incontroláveis e com motivações aparentemente paradoxais – de cada região, mesmo com o pesar das elites. Torna-se absolutamente coerente faze-las, já que foram os movimentos de bandeira popular que elegeram Correa, cientes da sua proposta de convocatória. Isso nos leva a conclusão – a partir de um ponto de vista que enfatiza a maioria democrática – que tais discussões são necessárias, e acima desse crivo, são um clamor popular.

Nesse sentido, este projeto político pode abarcar desde interfaces regionais até questões de relevância internacional. Apresenta-se rapidamente um cenário de polarização e reação, coadunado com a cautela em torno dessa nova direção proposta. Por um lado, as elites temem a perda do seu status, por outro a própria população desacreditada, por conta das promessas que não foram cumpridas e do esquecimento de um Estado que gira em torno de uma lógica alienígena para com os seus próprios cidadãos. Isso sem pensar no imenso abismo do que é cidadania neste continente. Em outra esfera de possível cooperação, há um problema grave na compreensão dos governos desenvolvidos, de parte significativa da mídia internacional e de formadores de opinião sobre o atual momento de mudança. As acusações de carência de democracia indicam a inabilidade destes em considerar as idiossincrasias de cada espaço. Pesam as concepções obtusas.

Para além dessa consideração paradigmática, as escolhas macroeconômicas norteadas para a América do Sul durante os anos ‘90 deixaram claras as suas falhas sobre o equilíbrio e a gestão de problemas da sociedade que já eram notórios. O corte nos gastos públicos é um exemplo claro dessa posição de descenso da soberania do Estado-Nação, ainda mais evidentemente apoiada ao pensar que Correa “gasta mais dinheiro do que deveria em projetos populistas”. Fica evidente a muralha (muito menos dada ao acaso do que pode parecer) que impede a compreensão do que é necessário para a sustentabilidade social, em face da verdadeira identidade política popular e aos problemas já seculares no Equador. Ao mesmo tempo, percebe-se o uso do termo populismo enquanto nome fantasia para qualquer proposição que esteja direcionada a anseios populares.


Entender a pluralidade para entender o Equador: uma questão urgente

Torna-se frágil a idéia de que os governos da atual América do Sul são populistas. A referência a uma fase passada no desenrolar do séc. XX denota uma preocupação pejorativa, de interesse classista e conservador para com essa frente, encerrando as suas diversas agendas em torno de uma só imagem estereotipada e anacrônica. E a confusão não pára por aí: como pensar a cidadania, a democracia, o Estado e os demais conceitos que orbitam nesta lógica de modo coerente e conectado a realidade dos chamados Forajidos, dos quíchuas equatorianos, secularmente marginalizados e ainda ligados à herança do ayllu, na luta pela terra? É possível, mais além, pensar a questão originária sob uma lógica nacional, como o caso do Qolla Suyu, na Bolívia. São legítimas e imensas as possibilidades de uma nova representação política, para além de uma discussão microscópica e ideologicamente rendida.

Fica latente o quanto é necessária uma outra lente para enfocar a realidade andina. É fundamental entender que a leitura da realidade e a praxis política dos movimentos sociais equatorianos é em largo sentido diferente do que já foi pensado no ocidente do séc. XIX e XX. A lógica de uma consciência de grupo social persistiu ainda após séculos de espoliação, conformando um leque de demandas que não se rendeu as traições políticas dos detentores do poder político, que não se enquadram na lógica de expectativas políticas estereotipadas pelo ocidente.

Nesse sentido, podemos citar o caso da composição unicameral do legislativo equatoriano, que entra em colapso frente à complexidade do fragilizado Estado de Direito que representa – em tese – a sociedade dividida em 22 segmentos, e dentro destes os notadamente diversos movimentos sociais originários. Por razões já indicadas, essas plurais representações já não rendem tanta legitimidade a esse modelo de instituição. O passado político recente ainda indica outras faces desse problema, como quando as marchas originárias foram surpreendidas em Quito com a composição da Junta de Salvação Nacional (2000), encarada como uma traição política pelo movimento unificado Pachakutik, em conluio com uma burguesia média interessada em frear o processo revolucionário dessas bases. Essa via institucional de um grande sinal de cansaço, e as massas responderam com irritação para com a inconseqüência das elites – sejam agrárias, sejam burocráticas ou políticas – instituídas principalmente através da assim chamada “partidocracia”. O povo do Equador não é volátil como se afirma nos meios de comunicação, e sim foi historicamente emparedado pelas ininterruptas ações excludentes. O modelo utilizado se esgota. Os governos passados demonstraram amplamente a sua expressão fraudulenta e corrupta. Não interessam mais partidos de direita, esquerda clássica ou até mesmo organizações como a CONAIE .

Mesmo assim, o executivo do Equador compreende que o Equador ainda possui as suas bases e o seu modelo pertencentes a essa lógica institucional, que é necessária a inclusão dessa massa civil na sociedade política e que a sociedade possui mais classes sociais do que somente a base excluída. Ou seja, as classes médias também fazem parte desse caótico cenário. Daí a necessidade de refazer a constituição. E quanto à aplicação de subsídios para a gasolina (um dos exemplos articulados para a crítica), é primário – para qualquer entusiasmo de manter a sociedade estável – que cada camada da sociedade tenha as suas pequenas expectativas saneadas. É importante enfatizar, entretanto, que isso não significa priorizar a classe média. Uma medida apenas não pode ser compreendida como retrato de uma agenda política muito mais ampla, tornando-se frágil ponto de apoio para a análise costumeiramente reacionária. Não pode ter a sua preponderância comparada com uma convocatória para uma Assembléia Constituinte. Isso sim é uma prioridade, e o foco das discussões por certo devem se ater a ela. Refundar o Equador torna-se necessário, por uma questão de sustentabilidade social para o século que se inicia.

Um futuro responsável?

Ainda sobre a democracia, a recuperação da sua atividade após a holla de ditaduras militares parece apontar questões muito importantes. Ao mesmo tempo em que fica óbvia a negação por parte das camadas sociais privilegiadas sobre qualquer responsabilidade sobre os massacres e aos atentados a pluralidade política, torna-se mais gritante que essa recuperação não foi eficiente na real inclusão social dos 25% da população do Equador. Ou mais claramente, a população indígena. Para as camadas estabelecidas, foi suficiente conferir o voto. É necessário dizer que uma democracia semi-plebiscitária não é satisfatória para suprir as necessidades de qualquer tipo de base social que precisa de emprego, de educação e cidadania.

E apesar de que o Equador não tenha passado pela onda neoliberal de privatização – que não ocorreu por conta da força popular – a repulsa dessas bases sociais para com as seguidas fraudes cometidas pelos partidos políticos pela corrupção foram importantes para o desagrado na representação política. Levantes populares de qualquer qualidade trazem imenso desgosto para qualquer oligarquia dominante. Nesse entendimento peculiar a estas classes, não interessa em nada alguma democracia participativa – em contraposição à democracia representativa já instalada – que tenha em vista a ação decisória direta do cidadão em temas públicos como a autoridade sobre os gastos estatais. O parecer da população para questões relevantes como a revogação de mandatos são abordados por esta “nova” organização política, que por certo não foi bem compreendida nas ultimas análises. A reorganização democrática e constitucional dos Estados sul-americanos é uma questão de pauta incontornável.

(1) Resposta a “Após o referendo, uma versão radical ou light de Correa”, do jornal O Globo, 15/04/2007

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