ENFF

Quando aceitei, com alegria e genuíno orgulho, estar presente aqui, hoje, para participar desta mesa, foi porque me encantei com a proposta de discutir o tema da universidade popular, pois ele nos convida a ir além dos marcos que estão sendo tão ferozmente mantidos pela grande imprensa. Ainda por cima, pensei ser uma bela ocasião para agradecer ao DCE a homenagem feita ao meu pai, Florestan Fernandes, pelos dez anos da sua morte, em agosto de 2006.

De todo modo, aceitando falar da Escola Nacional Florestan Fernandes(1), do Movimento dos Sem Terra (MST), não me dava conta da enormidade do desafio. Sou socióloga, professora aposentada da Universidade de São Paulo. Não sou militante do MST, não sou pesquisadora da produção agrária no Brasil, nem das lutas dos trabalhadores sem terra! Na verdade, conheci o MST no dia 23 de janeiro de 2005, na festa da inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes.

Até aquele momento, conhecia alguma coisa, graças à leitura de um ou outro artigo, e sabia que, se vivo, meu pai teria ficado muito orgulhoso de ter seu nome batizando uma escola do MST: filho de camponeses, sociólogo socialista, sempre denunciou que, entre nós, brasileiros, a educação formal tem sido usada para a manutenção dos privilégios da minoria e sustentou alto e bom som, como em discurso na Câmara Federal, em 1988, que “nossos problemas e dilemas (…) dizem respeito à miséria, (…) à fome, aos milhões de
desempregados, (…) à extrema concentração da propriedade agrária, às migrações erráticas das populações expulsas do campo para as cidades, ao inchaço das cidades e ao favelamento (…), ao abandono do menor, ao genocídio das populações indígenas, à discriminação e ao preconceito raciais contra o negro e outros grupos étnicos,(…) à corrupção do poder político e à anemia do Estado, em todos os níveis”[2]; problemas do Brasil, de vinte anos atrás, que o avanço do capitalismo neoliberal globalizado agravou muito mais!

Para Florestan, a solução desses problemas e dilemas esbarrava na precariedade do padrão educacional das massas e do nível de consciência de classe dos trabalhadores[3] e só a democratização do ensino poderia elevar seu nível de consciência crítica e de resistência. Eis porque defendeu a presença, na Constituição, do artigo que diz: “a educação é direito de todo cidadão, sendo dever do Estado oferecer ensino público, gratuito e laico, em todos os níveis”[4];
direito que nunca deixou de ser apenas uma promessa, pois o que era para ser de todos, persiste como privilégio! Bem dizia Florestan que, nas sociedades capitalistas dependentes, profundamente injustas e desiguais, as reformas capitalistas – como a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma educacional -, que fazem parte da revolução democrático-burguesa, só poderiam ser realizadas através das lutas políticas dos excluídos.
Assim sendo, não fiquei surpresa, naquele dia 23 de janeiro de 2005, quando encontrei, no palco da festa de inauguração da Escola, um enorme retrato do meu pai, em tamanho natural, todo alegre e sorridente, como se estivesse à espera dos seus próprios convidados!

Pois foi assim que conheci os Sem Terra, gente aguerrida, decidida, resistente e persistente, mas, também, acolhedora, curiosa, carinhosa e muito alegre. Desde então, quando sou convidada para participar de algum evento, sejam aulas ou palestras, festas ou assembléias, sempre que posso, compareço. Sou professora colaboradora da ENFF, mas não sou da coordenação. Costumo dizer que acabei me tornando uma espécie de embaixatriz da Escola e do MST junto aos meios intelectuais da nossa ainda tão incivilizada sociedade civil. Tarefa que aceito com prazer porque o desconhecimento, discriminação e preconceito contra o MST são quase tão arraigados quanto o ódio que lhe dedicam seus dois principais inimigos: o agronegócio e a grande imprensa.

Aceitei o convite, mas não sei como abordar um tema que me parece inabordável, pois não há como falar da ENFF, sem falar do MST e não há como falar do MST sem falar de educação! A gente sai atrás de um fio e, quando vê, já está emaranhado no outro! Sigo, então, um conselho do meu pai, que dizia: “quando uma tarefa é muito difícil, o melhor é começar comendo pelas bordas”. E é o que vou fazer, relembrando que, em várias vezes que fui à escola, encontrei cartazes espalhados pelas salas de aula e corredores, com uma frase assinada pelo meu pai: “façamos a revolução nas salas de aula, que o povo a fará nas ruas”. E eu sempre perplexa!

Leitora antiga e engajada da obra do meu pai, não conseguia lembrar onde ele teria escrito isso! Um dia, curiosa, perguntei ao João Pedro Stedile, um dos dirigentes do MST, se ele sabia onde encontrar a tal frase e ele me respondeu: “na verdade, também não sei; mas que é uma boa proposta, lá isso é!” Teimosa, comecei a procurar e, um dia,
encontrei um discurso que ele fez na Câmara, em 1988, ao qual já me referi há pouco, onde ele afirma que, Fernando de Azevedo, no livro A Educação na Encruzilhada, citou a frase, que tomou emprestada de um líder político mineiro, cujo nome não indicou, e a frase seria a seguinte: “façamos a revolução na escola, antes que o povo a faça nas ruas”[5]. Em outros termos, trata-se daquela bandeira, derrotada, dos pioneiros da educação nova, que pretenderam fazer a revolução burguesa, começando pela reforma da educação, como uma das reformas de base.

Trago a frase para o meu argumento porque ela revela como este sujeito coletivo, chamado MST, se apropria do saber erudito e faz uma elaboração que o torna adequado aos objetivos da sua própria luta. E foi assim que a advertência liberal burguesa “façamos a revolução na escola, antes que o povo a faça nas ruas” se transformou na bandeira de luta “façamos a revolução na sala de aula, para que o povo a faça nas ruas”! Uma diferença que revela a envergadura da aposta e do investimento do MST na educação popular.

Acho que, acrescentando mais duas frases, que emprestei do Frei Betto – “há momentos em que é preciso saber atravessar” e “quebrei cercas, derrubei muros, abri portas”[6] – completo a palheta das cores que me permitem fazer um retrato da Escola Nacional Florestan Fernandes.

Quebrar cercas, derrubar muros, abrir portas, atravessar, foram essas decisões e esses atos que levaram à organização dos sem terra de todo o Brasil com o objetivo de lutar pela reforma agrária. Colocar-se em movimento, sacudir o jugo, desafiar o presente com um projeto dos excluídos da terra; foi assim que diaristas, meeiros, posseiros, arrendatários, filhos de pequenos proprietários e pequenos proprietários formaram um movimento graças ao qual, como bem diz Ademar Bogo, “o substantivo sem-terra (com hífen) mudou de forma e se tornou sujeito Sem Terra”.[7]

Desde a luta histórica do acampamento Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta (RS), em 1981, que levaria à fundação do MST, em janeiro de 1984[8], a metáfora que melhor retrata o MST é a da caminhada, a da romaria, porque ela evoca esses milhões de deserdados e excluídos da sociedade civil, que se organizam para dar um basta ao seu desterro e colocam-se em movimento para exigir que a “terra da propriedade privada” se transforme em “terra para quem nela trabalha”, apostando que o lucro e a competição podem ser derrotados pela cooperação e pela solidariedade.

Esse sujeito coletivo, decidido a enfrentar os abusos da concentração da terra e da propriedade privada, quebrando cercas, derrubando muros, abrindo portas, logo descobre que não basta ocupar latifúndio da terra porque é necessário ocupar, também e simultaneamente, o latifúndio do saber. Melhor ainda, o MST compreende que é necessário “lutar contra três cercas: a do latifúndio, a do capital e a da ignorância”.[9] Atravessando os muros da sociedade civil, que o mantinha excluído da cidadania, este sujeito coletivo descobre que o seu direito à terra exige e pressupõe o seu direito à escola.

Sabemos que o Movimento Sem Terra tem como um dos seus traços de nascimento o fato de ser um movimento de luta e de resistência que se realiza com as famílias dos trabalhadores sem terra. Por isso mesmo, é um movimento habitado por homens e mulheres; por idosos, crianças e adolescentes[10].

Inícios, primórdios, decisões, problemas, tensões: o que fazer com as crianças? Muitas famílias queriam deixar seus filhos com os familiares, na cidade, para que não perdessem o ano escolar. Uma decisão que levaria à desestruturação familiar e à descaracterização do movimento. O fato é que as famílias decidem ficar com suas crianças e reivindicar escolas para os acampamentos e assentamentos.[11] Mas logo descobrem que ainda não basta. Às vezes, conseguem a escola, mas muitos professores trabalham por imposição e alimentando muitos preconceitos contra os Sem Terra. Outras vezes, as crianças são transportadas para as escolas das cidades próximas, mas muitas são recebidas como filhos de
criminosos. Como bem conclui Roseli Caldart, o direito do acesso à escola caminha junto com o direito de fazer de cada escola conquistada, uma escola comprometida com os ideais e os objetivos pedagógicos do MST.[12]

Os Sem Terra descobrem que não basta uma escola para os camponeses, querem uma escola dos camponeses, que respeite sua luta, sua identidade, seus valores, sua mística.[13] Escolas construídas por práticas educativas onde dominam o trabalho coletivo, a cooperação, a solidariedade, o incentivo para que a criança aprenda a tomar suas próprias decisões e a ser responsável por elas. Escolas que respeitam e dignificam o trabalho manual e o trabalho da terra. Escolas que se colocam contra o individualismo, o autoritarismo, a obediência cega, o machismo e o racismo. Em suma, reivindicando terra e educação, o MST engajou-se num processo que Florestan Fernandes chamou de revolução dentro da ordem, uma revolução cultural cujos desdobramentos serão plenamente desfrutados pelas próximas gerações.

Estive na Escola Técnica Josué de Castro, em Veranópolis (RS), que ministra cursos de 1º e 2º graus para alunos do MST e encontrei adolescentes, filhos da primeira geração de assentados,
jovens bonitos, alegres, decididos, confiantes, querendo entender, debater, argumentar, tudo olho no olho, um retrato bem diferente daquele do trabalhador rural que permanecia imobilizado, olhando mudo para o chão, envergonhado e submisso.
Como diz João Pedro Stedile, defendemos o “acesso ao conhecimento para que os camponeses pobres desse país possam libertar-se. Libertar-se da ignorância. Libertar-se da escuridão. Libertar-se da humilhação. Libertar-se da opressão. Libertar-se de sempre depender de alguém para lhes dizer qual o melhor caminho”.[14]

Aliás, auto-estima e dignidade são traços constitutivos desse sujeito coletivo chamado MST. Sentimentos tão bem expressos pela militante Neiva: “nós só vamos deixar de ser Sem Terra no dia que não existir mais sem terra(…), nós que já temos a nossa terra (…) continuamos pelas outras pessoas que ainda não têm terra, então nós continuamos sendo Sem Terra com orgulho (…) porque é uma questão de auto-estima nossa, pois o movimento nos transformou em gente mesmo, principalmente eu digo isso como mulher porque, antes de vir para o movimento, eu não conseguia olhar nos olhos de uma pessoa e conversar de cabeça erguida, porque eu me sentia sempre menos, e se fosse uma autoridade, um padre, existia aquela coisa de se sentir menos, de se sentir pequena de estar diante das pessoas e, hoje, dentro do movimento, tenho uma auto-estima tão grande que tanto faz eu conversar com a Salete, que é minha companheira Sem Terra, ou estar conversando com você, com um padre, uma autoridade,
com o governador, com quem for, eu me sinto cidadã, ser humano com orgulho, porque o movimento nos transforma em pessoas assim, do desespero para a auto-estima, e a mística faz muito isto com a gente (…) porque a mística faz a gente pensar muito, porque nós gostamos de fazer e fazer bem feito, então nós ficamos horas e horas pensando, aí criamos um tema e dizemos ‘bom, amanhã vamos fazer a mística sobre este tema (…), vamos fazer uma mística sobre a resistência, aí começamos a incrementar aquela mística sobre resistência, qual é o passo que vamos fazer, primeiro isso, depois aquilo, aí vamos pensando e construindo aquela mística que vamos realizar no outro dia (…) então é um processo de conscientização muito grande, muito bonito.”[15]

Arnaldo, outro militante, acrescenta: “a mística nasce basicamente como um cimento, que vai concretando (…) dando força interior (…) no sentido de dizer: ‘bom, nós nos organizamos e levamos pra frente, nós temos direito e somos
capazes’”.[16]

Já que acabei puxando este fio da mística e da sua importância na constituição da identidade dos militantes do MST, aproveito para lembrar, que a palavra mística “vem de mistério. Não no sentido do desconhecido, mas no sentido de uma relação com os sentimentos, com o que vem de dentro, de tudo aquilo que não se expõe. (…) Na realidade, a mística é cultivar um ideal.(…) No caso do MST, trata-se de um ideal, de um sonho coletivo. Qual é nosso sonho coletivo? O sonho de uma Reforma Agrária que realize uma partilha da terra em sua totalidade, é também o sonho de viver numa sociedade onde todos pudéssemos ser iguais, uma sociedade onde todos pudéssemos ter uma oportunidade de viver bem, uma sociedade onde todos pudéssemos ter acesso à educação, isto é, um sonho de viver numa sociedade justa. Portanto, o que é a mística? É cultivar este ideal.”[17]

Em outros termos, a mística é uma aposta do MST no poder cognitivo da estética, no poder criativo da sensibilidade e da emoção,
mesmo porque, como afirma Adelar Pizetta, coordenador da ENFF, para que o conhecimento chegue à consciência, muitas vezes é preciso, antes, saber falar ao coração[18]. Aliás, o MST é um movimento habitado por inúmeros poetas e músicos; o hino do movimento, por exemplo, foi escolhido entre tantas músicas que até parecia um festival.[19]

O fato é que é impossível falar do MST sem falar dessa decisão mística de se organizar, de atravessar, de colocar-se em marcha, de quebrar cercas, de derrubar muros, de abrir portas, exigindo terra e educação. Como me disse João Pedro, certa vez, “é só alguém me dizer que é do MST, e eu logo vou perguntando, e o que é que você está estudando?” Não por acaso, portanto, em meados do ano 2000, o MST já possuía 250 cirandas infantis (as suas creches) e 1800 escolas de 1º grau nos assentamentos, com 3800 educadores e 150 mil estudantes. Tinha, ainda, 40 centros de formação, oferecendo cursos de 2º grau, com mais de 1200 educadores e 25.000 educandos, jovens e adultos.
Isso tudo para não mencionar a rica diversidade de experiências, como é o caso das escolas itinerantes, que caminham junto com os acampados, e da pedagogia da alternância, graças à qual os militantes se deslocam para estudar em outras regiões, mas retornam, periodicamente, às suas comunidades, de modo a preservar seus laços com os companheiros, com a terra e com as suas raízes.

Quase desde o seu nascimento, o MST inicia parcerias com diversos espaços do saber acadêmico. De início, são as parcerias com os cursos de magistério e de técnicas agrícolas, para a formação dos seus próprios educadores de primeiro grau. Mas, em 1994, o MST faz sua primeira parceria com uma universidade, a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, para o curso de Pedagogia, destinado a formar educadores graduados para suas próprias escolas de segundo grau.

Hoje, 2007, segundo entrevista que me concedeu a historiadora Maria Gorete de Souza, da coordenação da ENFF, o MST possui 40 convênios de graduação com universidades federais e estaduais, para os cursos de geografia, letras, pedagogia, agronomia, gestão e cooperativas, administração, história e direito. Tem convênios de especialização, em nível de pós-graduação, para as àreas de estudos latino-americanos, saúde popular, direito dos povos do campo, economia política e educação do campo. Mantém um
convênio de mestrado, em sociologia, em Campina Grande, com cinco alunos neste ano e mais cinco, no próximo. Ademais, firmou convênio com Cuba e com a Venezuela.

Neste ano de 2007, o MST está com 90 jovens fazendo medicina, veterinária e história da arte, em Cuba. Atualmente, o MST tem 18 jovens já formados em medicina, em Cuba, que estão fazendo residência em Fortaleza, para obter o reconhecimento do seu título. O convênio com a Universidade Bolivariana, na Venezuela, ofereceu aos movimentos populares do Brasil, 100 bolsas custeadas pelo governo venezuelano, para fazer agronomia, agro-ecologia e medicina; e, neste ano de 2007, o MST já está enviando 23 jovens. Sem mencionar que 18 militantes do MST estão fazendo mestrado na Espanha.

Os convênios com as universidades avançam e estão produzindo belos resultados, mas também revelam muitas tensões e problemas. Há universidades públicas, como a Universidade de São Paulo, que não os querem como coletividade, exigindo que desistam, enquanto alunos, do seu pertencimento e aceitem diluir-se nas turmas acadêmicas. Curiosamente, a Faculdade de Educação aprovou o convênio e já tem os professores, que se ofereceram, voluntariamente, para a realização do projeto, mas a reitoria se recusa a assiná-lo! Em outros casos, as universidades só aceitam oferecer cursos de extensão porque, assim, não precisam dar diploma; ainda por cima, o convênio convém à universidade, pois, mostrando que ela está prestando serviços à coletividade, seria uma prova de que ela “dá atendimento aos pobres”. Ademais, muitas universidades querem impor os temas e as disciplinas e é difícil ao MST enfrentá-las com munição argumentativa.

Entrevistada, Maria Gorete de Souza disse que, em muitos dos seus encontros com diretores das Faculdades “vivo ficando vermelha de raiva e de muita humilhação”. Em algumas universidades, ela é recebida com o seguinte discurso: “a nossa preocupação é não cair o nível do curso, porque nós temos conceito A”. Uma outra, propôs retirar o curso de gestão, oferecido ao MST na graduação, para colocá-lo como curso profissionalizante, argumentando que seria vantajoso para o MST, porque seria mais rápido.

Um diretor de Faculdade quis saber porque o MST pretendia fazer curso de história. A Gorete respondeu: “o senhor já foi num acampamento? Não! Num assentamento? Também não! O senhor precisa ir, porque lá mora gente que sonha. Talvez por isso queiram fazer história! Mas eu também tenho uma pergunta pessoal, e o senhor, por que é que o senhor quis fazer história?”

Atravessar, derrubar muros, fazer muitos aliados e novos amigos, mas, também, várias vezes, encontrar outras cercas, construídas com os mesmos preconceitos e as mesmas discriminações. Em muitos casos, a universidade estende a mão para aceitar alguns dos debaixo, desde que eles sejam capazes de uma nova metamorfose: não podem preservar a identidade coletiva, tão duramente conquistada, precisam aceitar dissolver-se no denominador comum de uma concepção de mundo acomodada ao presente neoliberal e à sua lógica individualista, verticalizante, subordinante, utilitária e competitiva. Incapaz de abrir-se à diferença, a universidade amplia, mas não muda! Uma perda para a universidade que deixa de usufruir as contribuições dessa rica experiência de vida, que fala a língua da terra e do campo, e que lhe é tão estranha.
***
Como também ocorreu no caso da cerca da terra, à medida que o MST foi derrubando a cerca do saber, começou a refazer esse mesmo mundo segundo sua luta, seus ideais, seus valores e objetivos. Para Roseli Caldart, o desafio atual do MST é o de assumir-se como sujeito pedagógico e como pedagogo coletivo. Em outros termos, a luta atual é pela construção de uma pedagogia diferente da hegemônica, uma pedagogia voltada para a transformação do mundo e não para a sua conservação.

Como sujeito pedagógico, o MST quer afirmar seu compromisso com a luta por uma sociedade socialista, comprometida com um novo padrão de civilização.[20]
Resistir, negar, destruir, mas, também e necessariamente, organizar, resgatar, construir, transformar. Sujeitos coletivos formam-se historicamente e historicamente transformam o mundo e a si mesmos.

A Escola Nacional Florestan Fernandes é uma criação deste novo momento da vida do MST. Aliás, a escola, localizada no município de Guararema, há cerca de 60 km da cidade de São Paulo, começou a ser construída em março de 2000 e foi inaugurada no dia 23 de janeiro de 2005. Como tão bem nos relata Ana Maria Justo Pizetta[21], a escola custou o trabalho de 12.000 horas de 1.000 pessoas (927 homens e 63 mulheres), representando 112 assentamentos e 230 acampamentos, organizados em 25 brigadas de trabalhadores voluntários, representando 20 dos 23 estados nos quais o MST existe.

As brigadas permaneciam 60 dias no canteiro de obras, sempre auxiliadas por uma brigada permanente, formada por militantes com experiência em construção civil. O fato é que a ENFF é o resultado da solidariedade financeira e do trabalho voluntário, nacional e internacional, que, como diz Terrie, um jovem voluntário francês, “mostrou que é possível trabalhar sem patrão, sem procurar o lucro e, ao mesmo
tempo, ter (…) as vantagens da política alternativa de uma organização popular: participação nas decisões, ambiente solidário, sem submissão, conforto moral, companheirismo, saúde preventiva, segurança no trabalho, formação política, aquisição de conhecimentos teóricos e profissionais”.[22]

Inteiramente construída pelos Sem Terra, que produziram inclusive os tijolos, a ENFF é uma escola muito bonita. Num terreno amplo, cercado de muito verde, erguem-se as salas de aula, o auditório, a biblioteca, o salão de refeições, o laboratório, o pomar, os alojamentos para quase 200 alunos, e, inclusive, um campo de futebol muito utilizado, em alguns finais de tarde.Tudo cercado de muita beleza e tranqüilidade. Como bem recorda Sílvia Beatriz Adoue, antes mesmo de plantar a horta, os Sem Terra “prepararam o jardim, os caminhos bordados de flores e os canteiros, e plantaram uma muda de árvore de cada região do país, para que vingue. Do terraço do refeitório, pode-se ver e ouvir uma fonte (…)”.[23]

Funcionando há apenas dois anos, a Escola ofereceu 15 cursos, em 2005, e 14, em 2006. São cursos livres para militantes do MST, da Via Campesina e de outros movimentos populares. Os alunos são indicados pelos próprios acampamentos e assentamentos de todas as regiões do Brasil. Segundo a pedagogia da alternância, ficam cerca de vinte dias na escola, depois retornam às suas comunidades, por mais dois meses, e, então, voltam para mais 20 dias de aula, quando apresentam suas dissertações de final de curso. São cursos de filosofia, de pensamento brasileiro, de sociologia rural, de teoria econômica, de história.

A escola também oferece cursos para atividades específicas, como cultura e comunicação, estudos latino-americanos (economia, história, geografia) e núcleos de atividades temáticas, através de seminários, conferências, grupos de estudo e palestras. Atualmente, a coordenação da escola está dando muita importância ao curso de métodos e técnicas de pesquisa porque querem que
os militantes saibam organizar e realizar suas próprias pesquisas junto aos assentamentos e aos acampamentos.

A ENFF é uma das grandes criações desse novo momento, no qual o MST assume mais incisivamente seu papel de pedagogo coletivo e decide enfrentar o desafio de formar seus quadros políticos. Como bem declarou Maria Gorete, na entrevista, “sabemos que os convênios com as universidades garantem a formação para as especialidades que precisamos, mas as universidades não formam quadros políticos. A Escola Nacional tem por objetivo fazer a formação política de dirigentes e de militantes, inclusive daqueles que fazem, ou já fizeram, universidade”.

Ademar Bogo resgata uma dimensão profunda do projeto quando afirma que “aprendemos com as entidades que nos ajudavam – refere-se aos sindicatos, às igrejas e aos partidos políticos – que ‘só dirige quem sabe’; como pouco sabíamos de táticas e estratégias , nos sentíamos mal porque transparecia que tínhamos direito a ter um corpo, mas nunca uma cabeça própria.”[24]

Pela análise de conjuntura assumida pelo MST, a sociedade brasileira atravessa um momento de descensão da luta de massas, que, por isso mesmo, é o mais propício para a leitura, a reflexão e o aprendizado, de modo a ter “uma cabeça própria”. Momento de resgatar a herança deixada por inúmeros pensadores, teóricos e lutadores, mesmo porque “estamos abertos a todas as doutrinas em favor do povo”.[25] Mais ainda, momento de estudar,de discutir, de pesquisar, de modo a poder elaborar novos projetos alternativos ao neoliberalismo sabendo que “ a prática concreta da luta pela reforma agrária nos ensinou que não se pode copiar experiências, porque cada espaço, cada realidade local, traz novos elementos que vão sempre se recriando a partir do conhecimento já acumulado.”[26]

A dimensão utópica do projeto que dá sustentação à Escola Nacional é plenamente assumida por Ademar Bogo, ao reconhecer que “uma revolução não é só destruição e negação; ela é muito mais construção e afirmação”.

Penso que a Escola já é um primeiro momento dessa construção e afirmação. O que mais me emociona é a experiência desse modo novo de estar numa escola na qual não há distinção entre trabalhadores e estudantes, onde o esforço e o interesse pelo conhecimento convivem com práticas de solidariedade e companheirismo, no qual a sobriedade do estudo não permite que desapareça a alegria da festa, da música, da poesia e do chimarrão, passando de mão em mão.

A seu modo, embora talvez não saiba, o MST já anuncia a presença do novo. Afinal, enquanto a sociedade moderna vive proclamando que somos todos dispensáveis, inúteis folhas ao vento, consumidores passivos de um mundo que nos domina, o MST vem proclamar que não é verdade, que nós, trabalhadores, podemos nos organizar e resistir, que não estamos condenados ao presente e que podemos inventar um futuro de liberdade, igualdade e justiça.

Em janeiro, estive na escola para discutir junto com o colega Bernardo Ricúpero, a obra de Caio Prado Júnior. No segundo dia, no começo da noite, tivemos todos uma bela conversa com Leonardo Boff e com Frei Betto, que ali estavam por outras razões. Mais tarde, muita música e dança, céu aberto de uma linda noite estrelada, estou eu conversando com uma militante, muito moça e meiga.

A certa altura, ficou claro que ela estava cansada porque, na noite anterior, havia participado de uma das brigadas encarregadas da segurança da escola. Solidária, comentei: “nossa! se eu, depois de um dia de trabalho, precisasse deixar de dormir algumas horas da minha noite, estaria um trapo no dia seguinte!”

Sorrindo, ela me disse: “pois penso que não. Essa é uma experiência que nos dá força para vários dias. No Paraná, participei de um acampamento que foi cercado pela polícia. Ficamos presos ali e, quando precisávamos sair para buscar alimentos ou remédios, éramos vistoriados e humilhados,
especialmente as mulheres ficavam muito envergonhadas com os procedimentos da vistoria. Para nos amedrontar, ficavam dando tiros que passavam por cima das nossas cabeças. Pela primeira vez, participei de uma brigada de vigilância. Noite escura, a gente ficava ouvindo aquele silêncio no acampamento e sabia que nossos companheiros podiam dormir tranqüilos porque nós cuidávamos do sono deles. É uma sensação muito boa no coração! A gente sente que isso que estamos fazendo é um ato de amor e dá um sentimento de bem-estar muito bom. No dia seguinte, a luta continuava e lá estava eu, mais decidida e forte que nunca!”

Como esta, são muitas as vivências enriquecedoras! Afinal, vou à Escola como professora, mas sou eu que vivo aprendendo! Lá estava eu argumentando com o meu conforto pessoal e nem sabia que estava sendo privada de uma rica experiência de amor e de solidariedade!

(*)Heloísa Fernandes, socióloga, e professora emérita da USP, e professora colaboradora da ENFF.
Porto Alegre, 27 de março de 2007

[1] Tema da mesa proposta pelo DCE da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizada no dia 27 de março de 2007. Este texto é uma versão ligeiramente modificada daquele apresentado nesta ocasião.

[2] Fernandes, F., O Desafio Educacional, Cortez Editora, S.P., 1989, p.131-2.

[3] Idem ib., p.132.

[4] Idem, p.136.

[5] Fernandes, F., O desafio educacional, ob.cit., p.128.

[6] Betto, F., A Mosca Azul, Editora Rocco, R.J., 2006, p.282.

[7] Bogo, A. Lições da luta pela terra. Salvador. Memorial das Letras, p.420.

[8] Para uma análise histórico-sociológica da fundação do MST, Stedile, J.P e Fernandes, B.M., Brava Gente, a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil , especialmente “Raízes” e “Características e princípios”, Editora Perseu Abramo, SP, 2005.

[9] Stedile, J.P. e Fernandes, B.M., Brava Gente, ob. cit., p. 75.

[10] “Percebemos que aí residia nossa força, pois o homem, além de ser machista, é conservador e individualista. O movimento, na medida em que inclui todos os membros da família, adquire uma potencialidade incrível. O adolescente, por exemplo, que antes era oprimido pelo pai, percebe que numa assembléia de sem-terra ele vota igual ao pai. Ele decide igual, tem o mesmo poder, tem vez e voz e se sente valorizado.” Stedile, J.P., Brava Gente, ob.cit., p. 32.

[11] Caldart, R.S., Pedagogia do Movimento Sem Terra, Editora Expressão Popular, S.P., 1999, faz uma análise sociológica sensível e matizada dos momentos de tensão e de dissensão que marcaram essas decisões primordiais.

[12] Idem ib., p. 249.

[13] Para estas e inúmeras outras questões, recomendo V.A., Dossiê MST Escola, Documentos e estudos 1990-2001, Expressão Popular, S.P., 2005.

[14] Stedile, J.P., “Os frutos de um belo pomar”, Revista Libertas, edição especial, fevereiro de 2007, Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, pode ser acessada pelo site www.revistalibertas.ufjf.br.

[15] Citado em Prado, M.A. e Lara Júnior, N., A mística e a construção da identidade política entre os participantes do MST no Brasil: um enfoque psicológico, Revista de Psicologia Política da Universidade San Luis, Argentina, dezembro 2003, pode ser acessada pelo site www.psicopol.unsl.edu.ar

[16] idem ib.

[17] Entrevista com João Pedro Stédile, A mística do MST, em Frères dès Hommes, Info. Terra, número 50, junho 2004.

[18] Pizetta, A.,”A formação de quadros políticos: elaboração teórica, experiências e atualidade”, Cadernos de Estudos ENFF 1, A Política de Formação de Quadros, Parateí, 2007, p. 90.

[19] Escolhida em 1989, foi musicada, em forma de marcha, e gravada pelo maestro Willy de Oliveira, da Orquestra da USP, como é relatado por Stedile, J.P., Brava Gente, ob.cit., p. 134.

[20] Caldart, R., Teses sobre a Pedagogia do Movimento, 2005, mimeo. A Editora Expressão Popular, muito próxima ao MST, já está dando o exemplo, na área da cultura, desse novo padrão: são 120 títulos publicados, de excelente qualidade editorial e a preços escandalosamente baixos. Em convênio com o ITERRA e com apoio do FNDE, inaugurou uma série destinada aos leitores jovens e infantis que é, verdadeiramente, fora de série.

[21] Pizetta, A.M.J.,” A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes: um processo de formação efetivo e emancipatório”, Revista Libertas, ob.cit.., apoiada em inúmeros e preciosos relatos de muitas pessoas que viveram o processo, apresenta uma bela e minuciosa análise da construção da escola.

[22] Idem ib.

[23] Adoue, S.B., “Florestan Fernandes, a escola do MST e o jardim cercado da academia”, Revista Espaço Acadêmico, nº 47, abril 2005, pode ser acessada pelo site www.revista espacoacademico.com.

[24] Bogo, A., “A formação de quadros: desafios e necessidades”, Cadernos de Estudos ENFF 1, ob.cit., p. 75/76.

[25][25] Stedile, J.P., Brava Gente, ob.cit., p.59.

[26] Idem ib., p.58.

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