Quando as diferenças não são bem-vindas

Foto: Caixa de Pandora

Matéria na Rede Paranaense de Comunicação (RPC), no noticiário local que vai
ao ar ao meio-dia, mostrou, na sexta-feira (23/3/), que a prefeitura da
cidade de Apucarana (PR) está recolhendo “moradores de rua” e os despachando
da cidade. Segundo a matéria, os mendigos estariam causando transtornos à
cidade e incomodando os moradores. Para a prefeitura, os maltrapilhos
estariam sendo “despejados” em Apucarana por prefeituras vizinhas, por isso
ela os despeja de volta. Em resumo, o “crime” desses “não-cidadãos” seria
não somente não participar adequadamente da suposta vida comunitária como
também o de serem “estrangeiros”, isto é, de outras cidades. Uma funcionária
da prefeitura chegou a declarar isso claramente na matéria. Disse, com todas
as letras, que não são da cidade, logo não são bem-vindos.

Com relação ao primeiro ponto, é claro que não participam, pois não são
“cidadãos”. Pelo menos uma parte dessas pessoas não quer esse epíteto. Há as
costumeiras histórias dos que “caíram nessa vida” por desgostos, mas há os
que, por mais que lhes ofereçam uma vida pequeno-burguesa, não a querem. Com
relação ao fato de serem “estrangeiros”, se enquadram na categoria dos
“eles”, em oposição ao “nós” comunitário da pequena-burguesia.

Não se pode ser singular, não se pode ser diferente, muito menos nômade,
neste mundo ocidental – os ciganos provaram o anátema do Terceiro Reich por
isso. Podemos ir mais longe e definir que, em casos como o de Apucarana,
apenas são bem-vindos à cidade os “estrangeiros” que levarem dinheiro para
gastar (boas aparências podem, talvez, ser descartadas nesse caso). Se não
levam, cuidado, vão ser extraditados, depois de devidamente fichados na
polícia.


Renda para ser gasta

Mais uma vez uma rede de comunicação perde uma excelente oportunidade de
discutir profundamente um tema importante. A postura de objetividade não
está em contraposição a uma proposta de reflexão sobre os temas abordados.
Mas, aparentemente, não é culpa dos repórteres, editores, redatores: eles
não têm muito acesso a conhecimentos que os façam pensar.

As faculdades de jornalismo resumem seus currículos a “preparar o estudante
para o mercado” e deixam, com isso, de formar bons profissionais. O máximo
que a apresentadora do telejornal pôde dizer foi que se trata de “um assunto
complicado”. É pouco, é lugar-comum, não diz nada.

Os estrangeiros não são, historicamente, bem-vindos na sociedade ocidental.
Sempre há um olhar de desconfiança e de franca hostilidade em relação ao
estranho. Os gregos chamavam de bárbaros aos estrangeiros (bárbaros eram os
que não falavam; balbuciavam), o que é irônico, pois boa parte da riqueza da
antiga civilização grega parece ter sido fomentada pela presença de povos
nômades, bárbaros.

A chave para abrir a porta da simpatia geralmente é o que já foi citado
acima: renda para ser gasta. É a tônica da lógica do ocidente: você deve ser
útil e funcional. O que você tem fora isso é supérfluo ou indesejável.


“Freqüentemente alcoolizados”

Mais, a questão não é abordada pelo ângulo ético, resumindo-se ao estético,
fato que foi bem explorado na matéria. A tal “Tolerância Zero” da cidade
Nova York e o pastiche da mesma ordem promovido pelo governo Garotinho no
Rio de Janeiro há alguns anos se pautaram pela mesma lógica. Era preciso dar
uma aparência melhor à cidade. Retira-se os estranhos do convívio com os
“normais” e, pelo menos esteticamente, tudo fica “legal”.

A imagem de uma mão bem cuidada entregando uma passagem – o “bilhete azul”
da expulsão da cidade – a uma mão suja, grossa, com as unhas negras, é
emblemática. Se os mendigos fizessem as unhas ou usassem ternos – talvez se
pudesse descartar a gravata nesses casos – tudo estaria bem. Se fossem
“educados”, se tomassem banhos regulares – não no chafariz da cidade, é
claro – seriam aceitos?

Como não há muito interesse em entrar em contato com eles, a não ser através
da famigerada Secretaria de Ação Social – criada para, principalmente,
exercer a função de esconder ou expurgar a pobreza do território municipal –
e da polícia, como “não há sociedade, apenas indivíduos” (frase célebre da
neoliberal “dama de ferro” Margareth Thatcher nos idos dos anos 1980), é
cada um por si. Se os maltrapilhos quiserem tomar banho ou vestir uma roupa
melhor, que encontrem, por si sós, um chuveiro ou comprem, não com o
dinheiro de esmolas, vestimentas adequadas.

Quanto ao fato, citado na matéria televisiva e em uma matéria do jornal
Tribuna do Norte, de Apucarana, no mesmo dia, publicada na página B5, de
estarem freqüentemente alcoolizados, isso não é justificativa para o
desprezo. Inúmeros “cidadãos” de qualquer cidade se embebedam com freqüência
e são bem aceitos. Nunca é demais lembrar do hábito de convidar um amigo
para “tomar uma”, prova de civilidade para a maioria dos “cidadãos”. Álcool
é droga consentida e seu uso geralmente não acarreta grandes problemas entre
a pequena-burguesia. Pelo contrário, geralmente acompanha alegrias e é
solução para tristezas.

Solução final

Na verdade, a rede de comunicação não pode aprofundar esses temas pois se
dirige a um público que pensa que “diferença” é apenas torcer para um time
rival ou escolher itens exóticos de consumo. Os próprios jornalistas que
fazem as matérias pensam assim. É uma pena. Muito se perde desse jeito.

Não se trata, aqui, de apelar à prefeitura ou à polícia para que trate os
moradores de rua a pão-de-ló, muito menos de solicitar à rede de comunicação
ou ao jornal citados que deixem os mendigos em paz. Mesmo porque isso seria
impossível: são esses estranhos que dão a identidade ao cidadão
pequeno-burguês. É preciso tratá-los mal, é preciso ridicularizá-los e
estigmatizá-los, é necessário expor suas caras e corpos deformados na TV
para que todos que a assistem vejam maus exemplos que devem ser evitados e
execrados. Assim, os telespectadores e leitores de jornais podem definir
quem são, em oposição ao que não devem ser.

Trata-se, apenas, de pontuar essa forma estranha de vida que, geralmente,
nos passa como coisa natural no dia-a-dia. E quando falamos de “forma
estranha de vida” não falamos da vida dos maltrapilhos.

Em outros tempos, de forma mais exacerbada, essas práticas levaram à
proposta daquilo que ficou conhecido e execrado como “Solução Final”. No Rio
de Janeiro da década de 60, um governo levou isso tão à sério que chegou,
segundo se conta, a jogar alguns desses “entulhos humanos” num rio. Será que
é preciso chegar a tanto para a imprensa tratar com seriedade a questão?

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