São insistentes as campanhas da mídia, especialmente a televisiva, em apontar “crimes cometidos por menores infratores” e uma suposta complacência da legislação aos adolescentes, como se essa fosse a motivação da impunidade e da crescente criminalidade no Brasil.
O lamentável é que esse movimento político e midiático de tratar a infância e juventude como um problema social e de polícia – em vez de pensá-las como um segmento que demanda direitos específicos, pela necessidade de uma política de Estado diferenciada, porque prioritária -, faz parte da formação brasileira e diz respeito ao racismo que estrutura as instituições públicas no país, em especial as de saúde e educação e as de segurança e justiça.
A própria designação “menores”, no sentido da institucionalização da infância e adolescência, encontra aparato jurídico não a partir do Código de Menores de 1927, mas antes, com a Lei nº 2040, de 28 de setembro de 1871. É a Lei Rio Branco, ainda conhecida como Lei do Ventre Livre.
Nessa dita lei, que dizia conceder a “condição livre para os filhos de mulher escrava” que nascessem desde aquela data, na verdade, concedia aos “senhores de suas mães” o direito de manter sob seu domínio as crianças até os 8 anos, e, “chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de seiscentos mil Réis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei ” (Lei Rio Branco, art. 1º).
Esse destino, de que se fala, são as associações criadas para receber crianças e adolescentes – que eram apenas as negras. É, justamente, na institucionalização da infância e juventude negra que encontramos o modelo ideológico e administrativo das futuras unidades de “bem-estar do menor”.
A Lei Rio Branco ou do Ventre Livre também inaugura, segundo Maria Aparecida C. R. Papali – em Escravos, Libertos e Órfãos – A construção da liberdade em Taubaté (1871-1895) -, uma nova política de assistência à criança, dentro de um projeto filantrópico, com ingerência de médicos, sanitaristas e juristas. Foi o período em que as idéias higienistas e preventivas, incorporadas pelos médicos e sanitaristas, atuavam sobre a vida dos “menores carentes”. Ou seja, apontando-os também como um problema de saúde pública. Da mesma forma, os juristas adotariam as teorias sobre criminalidade ou vadiagem que passariam a rotular a infância e adolescência negras como carentes, desvalidas e delinqüentes. Citada pela autora, Maria Luíza Marcílio afirma que, desde então, “O termo criança foi empregado para o filho das famílias bem-opostas. Menor tornou-se o discriminativo da infância desfavorecida, delinqüente, carente, abandonada” ( apud PAPALI, op. Cit.: 123), que não seriam senão as crianças e adolescentes filhas e filhos de escravizadas ou ex-escravizadas.
Esse projeto de institucionalização e conseqüente criminalização da infância e juventude negra, no entanto, não se restringiu ao Império escravagista. Com o empenho dos juristas nas tais teorias sobre criminalidade – que atingiam sobretudo a população negra -, o primeiro Código Penal da República, em 1890, adota a teoria do discernimento para diminuir a maioridade penal para os 9 anos de idade.
Essa redução atingirá, certamente, a infância e adolescência negra, dado que no mesmo Código Penal são crimes ou contravenções a capoeiragem, o curandeirismo, o espiritismo, a mendicância e a vadiagem, tipos penais que, em verdade, correspondiam à situação socioeconômica e cultural do povo negro. Tanto é dirigida a redução da maioridade penal à população negra, que o teórico racista Raymundo Nina Rodrigues elogia contundentemente a decisão dos legisladores do Código Penal republicano:
o nosso Código penal vigente (…), trouxe-nos portanto um progresso reduzindo a menoridade de quatorze para nove annos (….) no Brazil, por causa das suas raças selvagens e barbaras, o limite de quatorze annos ainda era pequeno! (…) as raças inferiores chegam a puberdade mais cedo dos que as superiores (…) o menino negro é precoce (…) mas cedo seus progressos param (…) quanto mais baixa fôr a idade em que a acção da Justiça, ou melhor do Estado se puder exercer sobre os menores, maiores probabilidades de exito terá ella (…) (RODRIGUES, apud Hédio Silva Júnior, Crônica da Culpa Anunciada, em “A Cor do Medo”. UnB/UFG/MNDH, 1998).
Como vemos, tal discurso não destoa do sentido que se dá à discussão sobre a redução da maioridade penal hoje em dia. Mais uma vez – e, repetimos, insistentemente -, veicula-se a idéia de que o problema da segurança pública tem origem na infância e adolescência. Embora não mais se explicite o fator racial, visto que a Constituição Federal criminaliza o racismo, ele está visível nos números das crianças e adolescentes negras(os) “internadas” em instituições públicas, como Febems e Fundacs, no desprezo público quanto às crianças em situação de rua e no perfil preferencial dos jovens abordados violentamente pela Polícia Militar, ou vítimas de mortes violentas.
O atual sistema de justiça e segurança brasileiro foi construído por teorias como as de Nina Rodrigues, constituindo todo um procedimento que focaliza, na criança e no adolescente negra(o), a política de repressão e criminalização da infância e juventude brasileira, que se fundamenta, exatamente, pelo racismo original desse sistema.
Não nos surpreende, infelizmente, que a campanha midiática pela redução da maioridade penal deturpe os números da violência para induzir a sociedade a fortalecer o senso comum de que o problema está na garantia de direitos da criança e do adolescente.
A Constituição Federal, de 1988, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, por adotarem a doutrina da proteção integral desenvolvida na normativa internacional de direitos humanos, incomoda profundamente a quem ainda defende a perspectiva da teoria do discernimento e quer situar a questão da infância, adolescência e juventude na política de segurança pública, e não em uma política de proteção social específica para tais segmentos.
É preciso lembrar que, de acordo com pesquisa do Ilanud, dos atos infracionais cometidos no país, apenas 10% são cometidos por adolescentes, em geral conduzidos e acompanhados por adultos. Ressalve-se: no crime que está sendo utilizado para manipular a opinião pública em favor da redução, inclusive, dentre os vários envolvidos, havia apenas um adolescente.
Por outro lado, é a infância e juventude o segmento mais atingido pela violência no país. Em relação à violência letal, o Relatório de Desenvolvimento Humano, 2005, do PNUD, demonstra que as estatísticas dão o perfil do alvo preferencial da vítima dos homicídios: ser preto, jovem, de sexo masculino e solteiro. O que poderia suscitar uma política especial de garantia de direitos, no sentido de mudar esse índice, porém, suscita, erroneamente, a defesa de mais violações de direitos: incluir adolescentes na população carcerária como proposta para a segurança pública.
Além de contraditória, visto que transforma o grupo vulnerabilizado – a adolescência e juventude – em culpado pela violência no país, expõe esse segmento a mais violações institucionalizadas, pertinentes à violência policial.
Ainda pelo Relatório de Desenvolvimento Humano, uma pesquisa de registros de ocorrência envolvendo policiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro, entre janeiro de 1993 e julho de 1996, verificou 1.194 “incidentes” que resultaram em 991 civis mortos, incluindo mortes acidentais entre tiroteios. Desses dados, brancos – que constituíam 60% da população geral e 40% da população carcerária – eram 30% das vítimas. Os pretos – que eram apenas 8% da população geral (sem a contagem dos pardos, para a verificação do número total de negros) – totalizavam 33% dos presos e 30% dos assassinados por policiais. O desequilíbrio é explícito pela desproporção absurda.
A discussão sobre a redução da maioridade penal trata de uma questão que atinge crucialmente as bases da formação nacional – racista, repressora contra as classes expropriadas e violenta pela manutenção de poder por uma elite proprietária. A exploração de casos isolados de violência cometidos por adolescentes oculta perversamente as profundas desigualdades e a injustiça social que atingem principalmente a infância, adolescência e juventudes negras e empobrecidas.
A ação de criminalizá-las, ao tempo em que inverte a posição de vítimas para culpadas, mascara a responsabilidade do Estado brasileiro em investir e promover políticas concretas para tais segmentos, o que quer dizer promover uma vida livre de racismo, de violência e de criminalidade – pelo exercício pleno de sua participação sociocultural.
Recife, 28 de fevereiro de 2007.
* Entidade negra de luta contra o racismo e em defesa dos direitos humanos da população negra no Brasil.